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quinta-feira, 4 de julho de 2013

O AVIÃO QUE VINHA DE LESTE


Vamos imaginar um cenário de politic fiction.

Há um avião que se prepara para levantar voo em Moscovo. Um fiel empregado da CIA, ali em serviço, previne imediatamente os seus patrões na América: “O gajo vai levantar voo, o avião vai para a América do Sul, não consegui saber exactamente para que aeroporto.”

A máquina de técnicos imperialistas entra imediatamente em acção.

O gajo de Moscovo é o Edward Snowden, jovem ex-prestador de serviços aos ultra-sofisticados e poderosos serviços ultra-secretos americanos NSA, aquele americano que teve a coragem de atirar cá para fora informações absolutamente escabrosas sobre o monstruoso sistema americano, digo monstruoso no sentido de nazi-fascista-kgb, um sistema de espionagem cuja existência ignorávamos, mas que agora sabemos que se ocupa de dia e noite sobre tudo o que mexe à face da terra, pessoas, gente, crianças, gatos, elefantes, adolescentes, professores, gente pequena, gente assim-assim, funcionários, operários, gente mais pequena, mais velha, mais nova, mais rica, mais pobre, mais preta, mais branca, mais índia, mais amarela, mais americana, mais europeia, mais chinesa, mais japonesa, gente mais escura, gente africana, governos, agentes de governo, contínuos, mulheres-a-dias, embaixadas, chefes do estado maior, chefes de armazém, a lista é infindável, faz-me lembrar aquele poema do Drummond de Andrade sobre a lista telefónica.

Retomemos o fio à meada, o gajo levantou voo, logo, por conseguinte, a luta vital da NSA e da CIA contra o terrorismo, esse grande baluarte da identidade e dos descaramentos do império gringo-americano, essa luta vitalíssima exige respostas, contra-ataques, mísseis, tudo de imediato, armas letais, decisões no mínimo geniais.

Manda-se para o ar um caça caçar o dito avião? Não, isso não é possível, os americanos ainda não mandam em Moscovo, se ainda fosse o Napoleão e ele tivesse aviões, era canja, eram favas contadas.

Não se pode caçar o avião, mas pode-se mandar pará-lo. Parar um avião, aí está uma óptima, uma fulgurante ideia. Já houve exemplos disso. Lembro-me, duma maneira já um pouco vaga, do que aconteceu aqui há alguns anos, os pormenores já lá vão, mas tenho a ideia de que era um avião civil coreano cheio de gente, que foi abatido por um caça militar, russo, acho que era russo, o tal avião tinha entrado nos limites do espaço aéreo que já não era dele.

Caçar um avião no ar, tarefa muito complicada, mesmo para a NSA/CIA. Que fazer, então? O avião vai em direcção à América do Sul, a CIA, a NSA e todos esses extraordinários especialistas põem os computadores a trabalhar, traçam a rota previsível do avião, ele tem que ser travado dentro daquilo que será a sua rota normal. Vai ter que passar por Itália, por França, pela Espanha e por Portugal. E, a seguir, entra no Atlântico, aí já não há nada a fazer, ou seja, o avião tem que ser impedido pelos respectivos governos desses países de sobrevoar esses quatro países latino-mediterrânicos, dá-se-lhes a ordem, eles obedecem sem qualquer hesitação. Gente obediente. Mas, para já desvia-se o avião para outro país, que também seja seguro e amigo. Abreviemos este cenário político de série B, o avião aterra em Viena de Áustria, cidade muito segura, gente de confiança, não me vou alargar sobre porquê.

Aterra o avião, já tinham no aeroporto um exército de funcionários da segurança preparados, ocupam-se do seu estacionamento numa zona reservada, mandam abrir as portas, sobem a escada, entram. “Onde é que está esse gajo, o Snowden?...”. Nesta altura, sendo eu o autor do cenário, devia ser capaz de arranjar uma resposta em russo, estilo niet, mas infelizmente não conheço a língua. Imaginemos, então, a sequência sem diálogos. Ninguém respondeu à pergunta sobre o Snowden, é que no avião ninguém falava espanhol, nem alemão, nem inglês, só falavam russo. Não eram muitos, eram poucos passageiros. Estavam todos literalmente siderados, espantados com o que estava a acontecer.

Passado o efeito do siderante espanto, saiu de lá um gajo com ar atlético. Os polícias austríacos não o reconheceram, mas eu, que não estava lá, posso confirmar que ele era sem sombra de dúvida o Vladimir Putin. Os agentes austríacos assustaram-se com aquele gajo aos berros e, como se assustaram, desataram à porrada no Putin. Assustaram-se consigo próprios, não eram muito inteligentes, o que é que pensa, como é que reage um polícia austríaco quando lhe aparece um estrangeiro aos berros?

Naquele momento, eles não imaginaram nada do que viria a seguir, mas a sua brutal ignorância de polícias austríacos, que lidam em geral zangados e desabridos com estrangeiros, criou uma situação muito complicada. Continuemos a imaginar. Na melhor das hipóteses, talvez o mundo, naquela cena de avião estrangeiro sequestrado, tenha estado perto de chegar à beira duma guerra nuclear.

Podia ser um cenário de filme e, em geral, no fim dos filmes, no genérico costuma vir uma advertência final: “esta é uma obra de ficção, qualquer parecença com pessoas…. é puramente acidental”.

Mas, neste cenário apenas um personagem é de ficção, é o Vladimir Putin. Mas, embora de ficção, o presidente russo teve uma participação real na história e não propriamente como actor secundário. Está confirmado, vi na televisão. O Putin recebeu nesse dia, que é hoje, quarta-feira, 3 de Julho de 2013, o verdadeiro protagonista do filme, que é um tipo chamado Evo Morales que, por curiosa coincidência também é presidente, não da Rússia, mas da Bolívia.

Não era, pois, o presidente da Rússia que ia no avião de Moscovo, era o presidente da Bolívia que viajava no seu avião presidencial para a sua terra, a Bolívia. Foi forçado a aterrar em Viena de Áustria, foi tratado como um desgraçado espião e provável terrorista pela polícia austríaca que forçou a entrada no avião. Evo Morales e os seus acompanhantes foram forçados a ficar durante treze horas imobilizados no paddock do aeroporto de Viena. Entretanto, os srs. François Hollande, de França, Mariano Rajoy de Espanha, Enrico Etta de Itália e Passos Coelho de Portugal impediram-no de prosseguir viagem.

Como é que as coisas se teriam passado se, em vez do Evo Morales, presidente dum país latino-americano, estivesse de facto no avião o atlético e todo poderoso Vladimir Putin?

Os grandes países europeus, estilo Portugal, que são grandes países da grande finança, ricos e poderosos, sabem como tratar os pequenos e longínquos países, ainda por cima governados por um índio. São países da grande tradição racista, colonialista e fascista europeia. Detestam, odeiam e desprezam os pequenos países e os “indígenas” e, ao mesmo tempo, curvam-se perante a majestade dos grandes países que são quem agora governa de facto, países que manipulam, que espiam, que controlam tudo, que exploram, que matam. Esses países da união europeia, com toda a sua jactância, não passam de lacaios do imperialismo americano e não têm pinta de vergonha, não é ò Hollande, ò Rajoy, ò Etta, ò Coelho? Mas estão a ficar caquécticos, desconhecem pormenores supremamente importantes, como é, neste específico caso, o facto de a Bolívia possuir as maiores reservas mundiais de lítio. Sabem para que é que serve esta coisa? Sabem certamente, mas nunca é demais lembrar: sem lítio não há baterias para os automóveis eléctricos.

Ò Hollande, já agora, tu que és uma das principais sumidades da coisa chamada união europeia, embora até hoje, não tenhas feito nada que se visse, diz-me lá, explica-me: como é que tu, todo armado em patriota gaulista, andas a pedir, quase diria exigir, explicações aos EUA sobre o que é que eles andam a fazer a espiar as embaixadas e a administração e os políticos franceses, e, ao mesmo tempo, te pões todo de cócoras para ajudar os gringos a apanharem o desgraçado que anda fugido por esse mundo só porque teve a coragem de nos informar sobre as patifarias e os crimes que os serviços secretos americanos andam a fazer? Queres proteger as tuas embaixadas? Começa pela embaixada em La Paz, Bolívia. E, já agora aconselha os franceses a não se deslocarem pela América do Sul. Mesmo conselho, se é que vale a pena, para ti, ò Coelho. A questão é que, além de estares de malas aviadas, estas coisas são demais para a tua cabeça, demasiada areia.

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