A canção do ceguinho
da reforma do Estado, essa lenga lenga já dura há demasiado tempo, todos os
dias nos vêm alugar e massacrar os ouvidos com essa mirífica história. A
televisão, os jornais, os tipos do governo invocam todos os dias o tema e lá
temos que os ouvir.
A última peripécia
desta história que não é propriamente uma história no sentido literário do
termo, porque não tem nem princípio, nem meio, nem fim, esse episódio,
chamemos-lhe assim, começou há pouco mais de um ano quando o bando de
salteadores do passos coelho nos ameaçou com o saque de quatro mil milhões de
euros, quatro mil milhões, imaginam onde é que cabe tal quantia? Talvez nos
bolsos do Ricardo Salgado ou doutro banqueiro devidamente credenciado para tal
saque.
Quatro mil milhões de
euros representa o quê? Estou a interrogar-me, a propósito dum número de tal
grandeza, sobre a vida de quantos milhares, quantos milhões de pessoas
desempregadas, ou com rendimento mínimo, ou sem subsídio de desemprego, ou
simplesmente na miséria, essa arrogância de quatro mil milhões que têm que ser
cortados com o pretexto da reforma do Estado, isso representa o quê?
Quantos desempregados
da função pública, quantos aumentos de impostos sobre quem trabalha e não consegue
fugir para os benditos offshores de quem tem muito dinheiro e recursos, quantos
10+10+10% de cortes nas reformas de quem andou a trabalhar toda a vida com a
serena esperança de mais tarde, quando já faltarem poucos anos para ir desta
para a melhor, e poderem ainda, ou finalmente, ter a oportunidade de uma vida
mais ou menos digna sem precisar de andar a fazer contas para pagar a renda da
casa, os remédios, os enlatados, a ajuda aos filhos…
Reforma do Estado,
reforme-se o Estado, em que é consiste isso?
Para a gente que tem
andado a mandar – não estou falar de governar, que isso é outra coisa – o
sinónimo de reformar o Estado é óbvio que tem a ver com cortar, castigar,
destruir. Vendaval, tornado americano, não ficará pedra sobre pedra. Só se
safam os que estão acima dessas pequenas contingências da natureza rebelde.
Esses reformadores,
confortavelmente instalados nos comandos do poder, são uma espécie de lobos que
atacam os rebanhos indefesos na serra onde há os pastos e ninguém para os
defender.
As ovelhas, as vacas,
as cabras à procura de pasto somos nós, estou falar das desgraçadas vítimas das
alcateias estatais. Esses lobos são os gajos que de repente, graças à lei do
mais forte, nos cortam a jugular, o pescoço, o resto, não fica nada.
A alcateia desses
animais é actualmente chefiada por um tipo cujo nome é conhecido, toda gente
sabe quem é.
Mas o ataque já vem
de longe.
Não falemos do dr.
Salazar, era um tipo que apreciava a pobreza, os pobres agradeciam o carinho,
mas depois começaram a ir para a França, para a Alemanha, and so on. E mandaram
o dr. Salazar à merda.
Deixemos lá o
Salazar, falemos de coisas mais recentes.
A grande reforma do
Estado começou com o Sócrates, não o de Atenas, estou-me a referir àquele tipo
da Cova da Beira, célebre autor de extraordinários projectos de arquitectura
serrana.
Homem do interior,
homem coerente, o sr. Sócrates desatou a fechar serviços públicos no interior,
não tinham clientes dizia ele, não eram rentáveis, os centros de saúde, as
maternidades, as estações de correio, os comboios. No seu esclarecido
pensamento, eram coisas desnecessárias nos tempos modernos em que vivemos. Terá
razão, quem poderá contestá-lo, uma mulher em trabalho de parto, vivendo no
interior do Portugal deserto e sem maternidade próxima, tem sempre a internet
em casa, basta ligar o computador.
Reforme-se o Estado,
avançou essa luminária governamental da Cova da Beira.
Façamos então um
pequeno balanço da extraordinária reforma do estado em curso, para abreviar,
designemos essa tal reforma por REC.
Balanço não exaustivo
até à data e completamente inexaustivo em relação ao que virá ainda a
passar-se, sendo que o que vem a seguir é muito mais importante e significativo
quanto aos efeitos e patriótico alcance da REC.
Por decisão do sr.
Coelho, aumentaram os impostos, o IVA, o IRC, o imposto sobre os automóveis e
mais não sei quantos. Resultado: diminuiu a receita fiscal, aumentou a dívida
pública, deixo os pormenores aos economistas encartados, liberais, neo-liberais,
clássicos, ou o que lhes quiserem chamar.
O sr. Coelho introduziu
portagens em auto-estradas que anteriormente não as tinham. Resultado: as ditas
estradas ficaram quase vazias, os tostões amealhados nas tais portagens mal dão
para pagar as máquinas de cobrança. Mas as empresas das respectivas PPP
continuam a receber o seu. No problem, o Estado paga, o governo paga, ninguém
se queixa. A única coisa que o governo não paga são as suas dívidas aos
milhares de empresas que vão, entretanto, entrando em falência.
Salários do pessoal
da função pública e pensões dos antigos funcionários, o sr Coelho descobriu
aqui um verdadeiro maná, os cortes nos salários, os cortes nas pensões, nada
disso dá grande trabalho, não é preciso inventar nada, é só escrever um
despacho em meia dúzia de parágrafos, ele escreve o despacho e, ao fim da
tarde, o homem lá vai para Massamá, janta em família e dorme descansado.
É o grande projecto
de futuro, o pessoal da chamada Função Pública, funcionários, professores, jardineiros,
motoristas, tantas e tantas e profissões, essa malta tem que ser devidamente
castigada, já usufruíram de demasiados privilégios.
Objectivo da reforma
do Estado, não vale apena estendermo-nos muito mais sobre essa lenga lenga, objectivo
incontornável de salvação nacional: na próxima década, os que dependem da
função dita pública, se não querem ser empurrados para dormir num vão de escada
e terem ainda alguma coisinha para comer, esse pessoal vai ter que trabalhar
até morrer.
Essa ideia fantasista
de haver um direito à idade da reforma, isso acabou, passou à história, acabou
enquanto conceito jurídico. Estamos no limiar de novos tempos, tempos
excitantes, que nos desafiam a contribuir até à exaustão pelo bem do “nosso”
país. Os drs. Salgado do BES e Ulrich do BPI agradecem.
Em vez de pretender à reforma, quem se quiser
retirar, poderá escolher a idade da eutanásia que mais lhe convier, para isso será
devidamente assistido, tudo será grátis. Tal direito fica desde já reconhecido
como direito fundamental.
Um novo direito,
tomemos nota dos novos tempos, um direito inalienável que justifica e legitima
plenamente perante qualquer tribunal a recusa individual dos caixotes de lixo.
Ninguém será castigado.
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