PEDALAR É PRECISO!

quarta-feira, 28 de março de 2012

FASCISMO PÓS-MODERNO EM CENA NO CHIADO


O mais simples senso comum dizia-nos, estava à vista, que a anunciada greve geral da semana passada ia ser um fiasco. Foi um fiasco.


Não falemos, pois, dessa greve dita geral, concentremo-nos nalguns factos ad latera, que são factos extremamente preocupantes.


O assalto à liberdade de manifestação que se consumou na semana passada, entre outros sítios, no largo do Chiado em Lisboa, começou na anterior greve geral em Novembro. Estou-me a referir a tudo o que aconteceu nessa altura em frente à Assembleia da República, aquelas cenas junto às escadarias de S. Bento, com policiais provocadores fardados e não fardados que sacaram e agrediram jovens manifestantes que ali estavam pacificamente.


Os provocadores policiais levaram esses jovens, deram-lhes porrada, fizeram-nos desaparecer para destinos desconhecidos. Até hoje não se sabe o que é que lhes aconteceu. Todas essas cenas de banditismo perpetradas em nome de razões de Estado ficaram por esclarecer, nunca mais se falou no assunto. Os jornais, a televisão fizeram-se desentendidos, os tribunais, já sabemos, para que servem os tribunais?


Foi um ensaio, esses atentados de Novembro de 2011 anunciaram não apenas o que se passou no dia da greve geral da semana passada, mas também tudo o que poderá vir a acontecer nos tempos futuros.


Tal como em Novembro, a polícia e os seus agentes provocadores não atacaram os manifestantes sindicais, deixaram passar o pessoal da CGTP. O próprio ministro explicou porquê, é gente responsável, ele lá terá as suas razões.


Em Novembro, os sicários do governo atiraram-se aos protestantes informais do movimento dos indignados, na sua maioria jovens precários e desempregados. O cenário repetiu-se agora no Chiado. A desproporção era enorme, havia mais polícias do que manifestantes, os polícias estavam fardados e eram agentes provocadores agindo segundo as ordens do ministro do Interior e do chefe do governo.


A imprensa e o presidente da República deram imensa importância ao facto de dois jornalistas terem sido vítimas da selvajaria policial no largo do Chiado. Mas nem uma palavra para todos quantos estavam ali apenas para manifestar a sua oposição às políticas do governo e que acabaram por levar porrada a sério, com sangue à mistura.


A imprensa concentrou a sua atenção nas imagens da televisão, mas ignorou muitas outras situações que aconteceram pelo país fora, todas mais ou menos idênticas.


Não muito longe do Chiado, uma horda de polícias de choque fechou a rua do Alecrim e todas as ruas na zona do Cais do Sodré, onde não se passava nada, onde ninguém estava a manifestar. Havia pessoas que se limitavam a passear na rua, nem sequer eram muitas, por ali não se passeia muito, havia outras que simplesmente tinham ido beber um copo e conversar num dos inúmeros bares ou cafés que existem por ali. Gente pacífica que não ameaçava a ordem pública, gente que não estava a fazer mal a ninguém. Qual o quê, diria o Chico Buarque.


Obedecendo às ordens superiores do fascismo pós-moderno que está a tomar conta do país supostamente a mando da troika, o bando de polícias entrou nos cafés, entrou nos bares e pôs toda a gente na rua, encerrou, bateu, ameaçou, agrediu verbalmente, levou gente para as esquadras.


Havia algum jornalista por ali?


Não, os jornalistas estavam todos no Chiado. Presumo que tenham recebido recados da polícia e dos serviços secretos, “atenção ao que se vai passar no Chiado, estamos à espera de graves acontecimentos, agitadores profissionais prontos a atentar contra a segurança do Estado”.


É o regresso da PIDE.


Regresso confirmado hoje pelo artigo do Público intitulado “Inquérito aos incidentes no Chiado concluído após as férias da Páscoa”. O artigo é esclarecedor sobre o neo-fascismo para que caminhamos.


Fala dos “incidentes” do Chiado, mas logo a seguir refere que o ministro admite que “os incidentes não chegaram às quatro dezenas em todo o país”. Quatro dezenas, acham pouco, que história é essa, onde é que foram os tais incidentes, quantos feridos, quantos presos, quantos agredidos? Ò srs. jornalistas, por que é que não investigam, pagam-vos para não investigar, quem é que vos paga?


Eu não sou jornalista, não andei a investigar, mas em conversa com uma amiga fiquei a conhecer a odisseia de três jovens mulheres que foram tomar um copo e conversar num estabelecimento do cais do Sodré, estabelecimento que, aliás está na moda, e que acabaram por ser presas e algemadas, cada uma metida numa carrinha da tropa de choque, agredidas, metidas numa cela policial, presentes a um juíz e libertadas apenas muitas e muitas horas depois de lhe ter caído a horda policial em cima.


Coincidência das coincidências, na mesma semana em que se comemoraram os 50 anos da crise académica de 1962, crise em que estiveram envolvidos muitos ilustres personagens de hoje, incluindo o anterior presidente da República, vale a pena fazer comparações.


Em 62, houve manifestações, greves da fome, estudantes presos, tudo normal, estávamos numa ditadura. Ainda faltavam doze anos para a liberdade, que, aliás, havia de ser conquistada em grande parte graças aos jovens que há 50 anos lutavam contra o regime salazarista.


Cinquenta anos depois, vamos entrando num buraco negro. O SIS, serviços secretos, a mando do governo manipula a comunicação social, inventa “cenários catastrofistas”, dá rédea solta à polícia, ninguém está a salvo.


Entre os que mandam, ficamos com a sensação de que todos estão em pânico, os serviços secretos, a polícia de choque, o governo. Estão sem norte, preparam-se para responder a hipotéticos cenários de violência, a democracia que se dane.


Os tribunais só existem para proteger os ricos, a tropa vai remoendo impotente, o Paços Coelho faz charme à Merkel, o país corre para a bancarrota.


Greve geral? Só e quando for para deitar abaixo o regime que nos desgoverna.


Preparemos a greve geral que nos salve do fascismo pós-moderno.


Entretanto, se forem tomar um copo à brasileira ou ao cais do Sodré vão em grupo e vão preparados. Organizem-se contra os bandos neo-fascistas de cartão passado pelo Estado, criem associações, apostem na solidariedade, na acção política, deixem-se de pieguices.



quarta-feira, 21 de março de 2012

GREVE GERAL PARQUE MAYER


Mais uma greve geral está anunciada para amanhã, mais um episódio do velho ritual da impotência sindical.


Vai ser uma greve geral dos transportes, o que faz todo o sentido. É que o novo secretário–geral da CGTP fez a sua carreira sindical no sector dos transportes. Há anos que este homem organiza greves para chatear quem trabalha, gente sem defesa que precisa de ir para o emprego, levar os filhos à escola, ir às compras, visitar um parente ou ir ao médico. Ficam horas à espera de transporte e nada. Não andam a passear, não são turistas.


A imagem nua e crua que subsiste na nossa memória sobre o sindicalismo português é a do soberano desprezo que os sindicalistas “transportadores”da CGTP sempre têm manifestado por quem trabalha, ao longo destes muitos anos de cíclicas greves de transportes.


Greves que se repetem, greves cujo principal resultado acabou por ser a falência sem excepção de todas as empresas públicas de transporte. Essa é a triste realidade dos factos.


Sindicalistas que são do tipo castigadores dos mais fracos, mas que amocham diante dos gestores incompetentes e muito provavelmente corruptos das empresas públicas.


Não quero generalizar, mas a maior parte desses gestores públicos conduziram deliberadamente as empresas públicas ao actual estado de falência, cujas consequências caiem sobre os desgraçados contribuintes portugueses por muitos e desgraçados anos.


Nesta história das empresas públicas de transportes, estamos perante uma aliança típica entre o capital de Estado e o trabalho.


Os gestores capitalistas, protegidos pelos seus partidos-patrões, delapidam, usurpam, roubam a propriedade pública. Quanto aos sindicalistas, cabe-lhes castigar os desgraçados que não têm alternativa ao serviço público. Nesta aliança, ganham apenas os gestores em título das empresas públicas.


Afinal, para que servem os sindicatos? Boa questão.


Quanto ao Proença da UGT, estamos conversados, ele assinou o acordo com o governo da troika, está do lado do capital, do FMI, da Alemanha e dessa malta toda. Metamo-lo na gaveta, vai fazer companhia ao socialismo do Soares, essa gente não conta, não é alternativa.


Há uns anos, os militantes da CGTP, quando vinham para a rua manifestar, gritavam invariavelmente e isso aconteceu durante anos, “CGTP, unidade sindical!”.


Ò srs. sindicalistas cêgêtêpistas, supostamente comunistas, bloquistas, católicos progressistas, socialistas “de esquerda”, o que é que quer dizer isso de “unidade sindical”?


Unidade sindical para repetir indefinidamente o mesmo rol de disparates patrocinados desde há anos e anos pelos dirigentes do aparelho sindical?


Unidade sindical para alimentar a ilusão de que os sindicatos têm influência e capacidade, força e poder para porem o patronato, os capitalistas e os seus lacaios em sentido, que têm poder para influenciar e contrariar as leis e as práticas governamentais e patronais, cujo único objectivo é destruir todos os direitos que foram sendo conquistados e consagrados na constituição e nas leis da República?


Ò srs. sindicalistas, desculpem lá, não é por mal, nem por azedume que digo isto. Mas, se verdadeiramente estão apostados em cortar cerce o tsunami político posto em movimento, com o alibi da crise da dívida soberana, pela aliança entre governos e banqueiros portugueses contra o direito básico a um trabalho e a um salário dignos em Portugal, deixem-se de brincadeiras.


Inspirem-se da tradição do verdadeiro sindicalismo dos velhos tempos “classe contra classe” e tenham a coragem de convocar uma greve geral ilimitada.


Mas, antes desse passo sem retorno, preparem o país, preparem o povo, preparem os assalariados, os precários, os reformados, preparem todos os explorados para uma insurreição social a favor dum Estado baseado na justiça igual para todos, na solidariedade e na economia social.


Deixem-se de greves gerais para inglês ver.


Caminhamos para o abismo, já estamos acima de um milhão de desempregados, muita gente, muitas famílias com fome, muita gente trabalhando a qualquer preço, vergonhosamente explorados por patrões e lacaios patronais sem escrúpulos e pelo próprio Estado.


Greve geral é coisa séria, não é parque mayer.


Tenham juízo.

terça-feira, 13 de março de 2012

AS ELITES A QUE TEMOS DIREITO


Um país sem elites elíticas está entregue à bicharada. Cada país tem a sua história, mas cada uma dessas histórias depende das tais elites.


Depois da crise de 1385, Portugal passou para a frente da Europa graças às elites que soube criar. Foram as elites da Ínclita Geração, a geração que preparou as viagens e a descoberta de novos mundos e de novas rotas comerciais que eram completamente desconhecidos das potências europeias, uma geração de cientistas, de comerciantes, de novos cruzados missionários e de aventureiros seduzidos pela ideia de irem à descoberta pelos mares sem fim.


A principal elite destas elites eram não apenas os comerciantes, que queriam ganhar dinheiro e roubar mercados às repúblicas italianas, mas também os cientistas, Pedro Nunes é o nome que mais me ocorre. Entre estas duas elites forjou-se uma aliança para atingir objectivos precisos, aliança fundada e dirigida durante muito tempo pelo Infante D. Henrique.


Pormenor que convém assinalar, estes comerciantes e cientistas eram, na sua maioria, judeus.


O rei D. Manuel, que foi apelidado de venturoso mas que na realidade apenas soube trazer desgraça para o país, decidiu expulsar, sob pressão dos concorrentes espanhóis, toda essa gente, esses comerciantes, banqueiros, filósofos e matemáticos judeus. A grande maioria dos proscritos foi parar à Holanda. Foi lá que nasceu o grande filósofo universal Bento de Espinosa, filho de judeus portugueses.


Holanda, Holanda, país eleito por um conhecido grupo económico português para nele se sediar. Há coincidências, reincidências extraordinárias.


Desde o fatídico rei chamado venturoso até aos dias de hoje, a sorte de Portugal tem sido uma triste sorte, a de um país sem elites elíticas.


Houve fogachos, houve algumas excepções, tivemos nos finais do séc. XVIII e nos princípios do século XIX os estrangeirados, o Verney, o Ribeiro Sanches, a Marquesa de Alorna, o iluminista Marquês de Pombal, depois vieram os liberais, o Garrett, o Herculano e outros.


Mais para o final do século, tivémos o visionário industrialista Fontes Pereira de Melo e o pessoal das Conferências do Casino, o Antero, o Eça, alguns proto-socialistas e sindicalistas. Comparando o séc. XIX com o século XX, em matéria de elites elíticas, é incontestável que as elites oitocentistas foram mais brilhantes quanto a artistas, escritores, filósofos e até políticos do que o século XX.


O problema do século XIX é que não deixou ao país uma herança com grandes objectivos que merecessem ser prosseguidos. Não conseguiu acompanhar o andamento da revolução industrial, provavelmente porque as suas elites eram avessas a maquinismos e, porque não estavam disponíveis para arriscar os seus privilégios de classe e preferiam continuar a ser ao mesmo tempo rurais e lisboetas. Também porque a monarquia “oceanográfica” de D. Carlos não tinha nem vontade, nem capacidade de mudança nem estratégia para o país. Vivia dos rendimentos, levou o país para a deriva.


Perdoem a longa introdução.


Não vale a pena falar nem da república nem do Salazar corporativista e pidesco, são sessenta anos de tristes memórias.


Que elites é que temos hoje, nestes malfadados tempos, nestes tempos de desgraça?


Nos tempos da velha monarquia, as elites eram recrutadas nas boas famílias da aristocracia, era gente que recebia em herança uma vida com futuro assegurado com propriedades, privilégios, relações sociais, alianças matrimoniais, tudo corria no melhor dos mundos. Era uma gente absolutamente e egoisticamente epicurista que se limitava a recolher os frutos semeados pelo avô, pelo trisavô, pela sogra, pelos tios.


Os privilegiados da burguesia herdavam outras coisas, o cartório, o consultório, a farmácia, as terras do pai. Os jovens herdeiros burgueses especializaram-se nas chamadas profissões liberais, cujos privilégios sobreviveram até hoje. Outros mais ousados apostavam no comércio externo. Mas raríssimos se aventuravam a arriscar na indústria, isso era demasiado para o conforto das suas modestas ambições.


De maneira geral, as jovens gerações burguesas, a partir o início do século XX, aprenderam a dar expressão ao seu papel social como continuadores dos seus interesses de família e de classe através da universidade. Essa aliança burguesia-universidade criou novos personagens de sucesso, novas elites com a particular chancela do diploma universitário. Quem não fosse bacharel ou licenciado, dificilmente poderia presumir chegar a advogado, médico, director-geral, deputado, presidente de câmara ou presidente de qualquer outra coisa dependente do Estado.


Houve uma revolução em 1974, houve uma massificação do ensino, houve nos anos 90 uma explosão do ensino superior privado, mas quanto ao papel dos diplomas no sucesso social das elites, os mecanismos só começaram a mudar há muito poucos anos.


Todos os anos, as universidades e os politécnicos diplomam milhares de licenciados, centenas de mestres e algumas dezenas de doutores (bacharéis não, porque isso acabou).


A maior parte desses diplomados tem hoje destinos mais ou menos inevitáveis: na melhor das hipóteses, call centers, centros comerciais, bares, restaurantes, tudo trabalhos a curto prazo. Podem também emigrar, o governo apoia.


Licenciados, mestres, doutores, tudo isso há cerca de quinze anos eram passaportes assegurados para obter carreira, sucesso, salário, estabilidade, um futuro risonho. Mas tudo acabou, o paradigma finou-se.


As universidades já não garantem emprego a ninguém, como elevador social elas passaram a quantidade praticamente negligenciável.


No entanto, mantêm ainda um velho privilégio. É que, na fabricação das elites escolhidas para nos governar, conservam o poder de chancela.


Nenhum ministro, nenhum secretário de estado, director-geral ou qualquer outra coisa do género se pode apresentar para tomar posse do lugar se o seu nome não for precedido da partícula dr. Neste aspecto, nada mudou, tudo continua como há cem anos.


Ao mesmo tempo, o mundo universitário em Portugal, depois do interregno da década de 1960, continua a ser um conjunto de gente pequena apenas interessada em defender os seus interesses, sejam de classe ou de qualquer outra proveniência.


Aqui ao lado, em Espanha, estudantes universitários têm vindo para a rua, manifestam-se, lutam contra a austeridade, são jovens com consciência social e política. Em outros países europeus, as jovens gerações têm manifestado posições políticas activas e não apenas em defesa dos seus interesses específicos.


Em Portugal, os estudantes universitários, raramente têm saído à rua, aliás sempre em pequeno número, e apenas para defender interesses particulares, propinas, bolsas, ponto final.


Realidade cruel, nos últimos quase quarenta anos, os estudantes universitários em Portugal não desempenharam qualquer espécie de papel social e político. A decadência social e política das nossas universidades começou aí nesse desinteresse, nessa indiferença, nesse individualismo estéril das jovens gerações que têm andado a ser formadas para o papel de elites do futuro.


Consequência inevitável, as universidades passaram a ter como principal função formar desempregados e trabalhadores precários. O que significa que deixaram de ter o monopólio de formar elites.


Actualmente, as elites, ou seja aqueles que são ou foram preparados para governar e dirigir o país, para serem ministros, primeiros-ministros, secretários de estado, gestores, chefes de gabinete, consultores, directores-gerais, toda essa gente passa agora obrigatoriamente por outro crivo, que não é o universitário.


É o crivo das juventudes partidárias, o crivo dos partidos, o crivo das cumplicidades, das negociatas e dos interesses de grupos ao assalto do poder.


Essa é a verdadeira escola de elites que temos agora.


É fenómeno recente. Exemplifiquemos com alguns nomes sonantes esta nova filière que forma as novas gerações dos que mandam no país.


José Sócrates, “engenheiro” da “universidade” independente, “licenciado” na véspera de ser membro do governo.


Passos Coelho, diplomado também quase na véspera de ser primeiro-ministro por uma “universidade” privada, cujo nome desconheço. Chegou a primeiro-ministro, depois duma persistente carreira na jota ésse dê.


António José Seguro, antigo aluno de gestão do ISCTE, cuja licenciatura não conseguiu terminar, tendo-se licenciado noutra coisa qualquer numa dessas “universidades privadas”, também muito tempo depois de estar bem instalado na carreira política, graças à jota ésse.


Em matéria de elites, as universidades mantêm ainda um vago poder de chancela.


Põem o carimbo no diploma, pode ser num domingo à noite, num vão de escada, o futuro ministro vai para casa satisfeito, apenas precisava da chancela, do carimbo sobre a partícula, sr. dr., sr. engº.


Terá futuro este negócio de carimbos universitários?



terça-feira, 6 de março de 2012

ANDRÓIDES, CAPITALISMO E MIGRANTES DO FUTURO





O Público evocou hoje o grande escritor americano Philip K. Dick, achei que era uma óptima ideia, se bem que deteste o novo modelo arrumadinho e piroso que a direcção do jornal resolveu inventar, só para chatear os fiéis leitores.


Os jornais nunca deviam mudar nem de estilo, nem de aspecto, nem de princípios. À nossa volta já há demasiadas mudanças, misérias e tragédias. O tempo de duração dum jornal credível e igual a si próprio é no mínimo igual à idade do Manoel de Oliveira.


Pelo que consegui perceber, a ideia do artigo subscrito por um professor da Universidade Nova de Lisboa que, pelo que me foi dado conhecer, se encontra “à frente de seminários como Cibercultura, Cultura Pop e Modos de Ficção” - devem ser extraordinários esses lugares de encontro das jovens élites - , é alimentada em dois pretextos.


Um pretexto implícito e, que só por si, justificaria qualquer artigo honesto e outro cuja oportunidade nem me parece implícita nem explícita, mas que se aparenta notoriamente com a divulgação de um projecto editorial para publicação de quase 1000 páginas de manuscritos do autor tão prestimosamente evocado.


O pretexto implícito, tem a ver com o facto de que o aniversário da morte de Philip passou na última sexta-feira, 2 de Março, por maléfica coincidência, dia da assinatura do nefasto tratado alemão anti-défice.


Se o Público tivesse revisores de texto bem pagos e muito atentos, certamente não permitiria que escapassem erros e óbvias contradições de datas e tempos de vida como aqueles que aparecem logo no início do texto.


No subtítulo do artigo afirma-se à cabeça que Philip K. Dick morreu há“três décadas”, o que, aliás é verdade. Só que, logo a seguir, no início do corpo do texto, a morte do célebre americano autor é localizada “a 2 de Março de 1972”.


Ora, distintos jornalistas, professores universitários, revisores de texto, quem quer que seja, 1972 foi há 40 anos, estão a tirar dez anos de vida ao homem. Não aprenderam a tabuada, claro, ou então andaram na mesma escola do Alberto João da Madeira, especialista em contas de sumir.


Façam um esforço, sejam exactos, o que os leitores exigem dos jornais que compram no quiosque é que os jornais e os jornalistas não brinquem com coisas sérias. É verdade que o Philip teve uma vida muito complicada, morreu demasiado jovem, mas tenham respeito, não lhe roubem dez anos de vida!


O pretexto explícito para esta evocação do Público é completamente obscuro e incompreensível, está tudo mal explicado. Não vale a pena perder tempo com isso. Aparentemente terá a ver com a publicação realizada em Novembro passado nos USA duma coisa chamada The Exegesis of Philip K. Dick, apresentada pelo autor do artigo como sendo “944 páginas ilustradas a partir dos milhares de páginas manuscritas a que o escritor chamou Exegesis”. Adelante, como diria Dom Quijote.


Não conheço nada das tais 944 páginas, para mim o K. é The Man in the High Castle, que, entre coisas muito conhecidas, escreveu Do Androids Dream of Electric Sheep.


The Man in the High Castle parece ser um livro de ficção científica, é assim que costuma ser apresentado. Ficção científica sem naves espaciais. A história passa-se num mundo que ficou felizmente para trás, um mundo completamente inventado porque nem a Alemanha nem o Japão ganharam a guerra.


Philip K. Dick viveu principalmente na Califórnia, durante a época dourada dos anos hippies e durante os seus curtos cinquenta anos de vida, escreveu e escreveu, não parou de escrever. Inventou qualquer coisa completamente nova que pode ser catalogada como ficção científica de inspiração político-filosófico-parapsicológica and so on.


Como é de regra, o homem só passou a famoso quando se foi desta vida. Foi em 1982, quando saiu o filme Blade Runner. A última legenda do genérico deste filme é, e nem podia deixar de ser, "em memória de Philip K. Dick". Porquê em memória de...? É que Blade Runner é um filme inventado a partir do livro Do Androids Dream of Electric Sheep, escrito pelo Philip em 1966.


Curioso título esse. Cenário muito pouco científico, ficção sim mas principamente poética, com polícias e marginais, faz-me pensar nas histórias de malandros do Brecht e do Kurt Weil. Mas nesta história, os marginais são replicantes, ou seja, andróides criados pela engenharia genética, são iguais aos seres humanos, de carne e osso como nós, mas têm uma duração de vida muito mais curta. That's the question, they not accept it.


Parecem humanos, mas são escravos. Parecem humanos, mas são desterrados para planetas onde nenhum ser humano consegue trabalhar e, muito menos, sobreviver.





Do Androids Dream of Electric Sheep é sobre o fascínio de viver, sobre o fascínio de qualquer ser vivo sobre o que é isso de viver.


Mas é principalmente o testemunho de K. Dick sobre o capitalismo. É a versão actualizada do Capital de Marx. É a versão actualizada do futuro de duas categorias de futuras gerações de humanos: os que gozarão do privilégio de nascer e de terem uma vida longa e os que serão fabricados em série para servir o mercado de trabalho.


Há duzentos anos, os humanos eram praticamente andróides, eram andrajosos e miseráveis, viviam em média menos de trinta anos e raramente se revoltavam. Agora vivem mais de oitenta, daqui a um século talvez mais de noventa. Que fazer com tanto tempo e com tão poucas oportunidades de vida?


Alguns, muito poucos, terão o extraordinário privilégio de viajar entre o norte e o sul, entre o leste e o oeste, admirar o por-do sol, as praias, o mar, as montanhas, o museu do Louvre, a Capela Sistina, a Lagoa das Sete Cidades.



A maioria, o grande exército dos dependentes das agências de rating, esses, não têm por onde escapar, vão ter que emigrar, vão dormir dentro de carcaças de carros, dentro de ruínas de cidades sírias, ruínas das Homs do futuro.


MERKEL CONTRA HOLLANDE


O futuro da união europeia envolve o futuro de muitos milhões de europeus.


Mas, neste gigantesco puzzle, o que sobressai são alguns jogos de bastidores e manipulações organizadas por políticos supostamente preocupados com a sobrevivência e progresso social da dita união.


O futuro da união é coisa séria, não porque a UE possa hoje ser considerada coisa séria, mas porque do futuro desta engrenagem pan-europeia, do futuro dessa espécie de união soviética - inventada através do fio do tempo desde os anos 50 por espíritos porventura bem intencionados – dele depende o futuro de muitos milhões de pessoas, principalmente gente frágil, desempregados, gente pobre, gente que inevitavelmente acaba por ser presa fácil dos jogos de poder de políticos poderosos associados a banqueiros, grandes multinacionais, vigaristas, ladrões, traficantes de toda a espécie. Tudo gente que, entre si, se conhece bem.


Neste dramático ano de 2012, o futuro da união europeia, e não se trata apenas de futuro de curto prazo, depende dos resultados das presidenciais francesas.


Há poucas semanas, a madame Frau Merkel foi a Paris manifestar expressamente o seu apoio ao sr. Sarkozy, candidato sortant às próximas eleições presidenciais francesas.


Graças ao Der Spiegel, respeitável jornal alemão, na sua edição publicada hoje, ficámos a saber que a dita madame chanceler terá assinado com outros chefes de governo da euro união, políticos apresentados como conservadores, uma espécie de pacto anti-François Hollande, candidato de esquerda à presidência da república francesa. Todos se comprometeram em não receber o candidato socialista.


Questão óbvia: se tal pacto é autêntico, o que farão os seus subscritores se o Hollande for eleito?


Não terá havido cerimónia da assinatura do tal pacto, não existem dessa sagrada união anti-Hollande registos iconográficos que possam excitar os telejornais de televisão.


Por mais sérios que sejam ou se apresentem, os grandes jornais que se consideram indispensáveis ao futuro da humanidade, nunca conseguem subtrair-se à grande vertigem do front of page, precisam que falem deles e, assim sendo, prestam-se facilmente a manobras de bastidores de agit-prop ao velho estilo soviético.


O que ressalta desta história é que o Der Spiegel foi descaradamente utilizado pelo estado-maior da Frau Merkel para mandar uma mensagem a alguns prováveis adversários. Uma mensagem de ameaça.


Toda a questão reside em identificar quem é que são os destinatários dessa ameaça.


Na lista do jornal alemão são apresentados como signatários do pacto anti-Hollande os improváveis nomes de David Cameron do Reino Unido, de Mário Monti da Itália e de Mariano Rajoy de Espanha.


Digo improváveis e explico porquê.


David Cameron recusou o pacto anti-déficit imposto pela Alemanha e, logicamente, não estava lá em Bruxelas na sexta-feira, 2 de Março para o assinar. Questão óbvia: por que carga de água é que o David, mesmo sendo conservador, havia de assinar um pacto contra o Hollande, com o argumento de que este – caso seja eleito - vai querer renegociar o dito tratado europeu pró-regra d’ouro anti-déficit, tratado esse que ele, primeiro-ministro britânico recusou? Efeitos do discreto charme da Frau Merkel?


Mariano Rajoy, é verdade que assinou o tal tratado anti-défice, mas mal a cerimónia acabou, cerimónia que foi bastante rápida, menos de 15 minutos, o nuestro hermano entrou na sala ao lado para, em conferência de imprensa anunciar que o défice espanhol para 2012 ia ser superior ao que tinha sido acordado com os burocratas de Bruxelas. Acrescentou que essa era uma decisão soberana de Espanha. Olé!


Último convidado para esta história de pacto. Mário Monti é presidente dum governo dito tecnocrata. Foi nomeado pelo presidente da república italiano, Giogio Napolitano.


Napolitano e a grande maioria dos italianos queriam ver-se livres do Berlusconi, foram buscar o Monti.


Mario Monti conseguiu impor aos partidos italianos uma política que não passa por privatizações nem por fortes medidas de austeridade e que privilegia a luta contra os privilégios das muitas corporações italianas que vivem à custa do Estado. E, quanto aos burocratas de Bruxelas e ao eixo franco-alemão, as suas posições têm sido cada vez mais críticas.


É certo que na lista do Der Spiegel nada parece bater certo: Cameron, Rajoy, Monti, juntos com Angela Merkel, aliada de Sarkozy, contra o mais que provável futuro presidente de França?


Esta merkeliana lista faz-me pensar na Rússia de Vladimir Putin.


Putin apoia o regime criminoso da Síria, apoia os massacres do Bashar Al Assad contra o seu próprio povo, porque tem interesses económicos a defender, porque a Síria lhe empresta uma base naval com saída para o Mediterrânio. Ò Putin, o que é que vais fazer quando o Assad for fazer companhia ao Ben Ali, ao Kaddafi e ao Moubarak?


É a velha história dos políticos que, porque se se sentem poderosos e inatingíveis, manipulam, mentem, matam e deixam roubar se for preciso. O poder, mesmo que não seja absoluto, corrompe absolutamente.


A chanceler alemã podia ter escolhido para a sua lista anti-Hollande gente cuja fidelidade e irmandade germanófilas não levantassem a mínima dúvida: Finlândia, Áustria, Holanda…
O problema alemão em incluir essa gente na tal lista é que, se eles não põem em causa a hegemonia alemã, então não faz qualquer sentido ameaçá-los.


E a lista publicada pelo Spiegel é uma lista de países e governos que a Alemanha quer ameaçar.


Tudo isto porque o projecto de hegemonia alemã sobre Europa se aproxima do momento da verdade.


Tal projecto não é ameaçado pelo Reino-Unido, e muito menos pela Irlanda.


Os manipuladores ao serviço do governo alemão colocaram David Cameron na lista apenas para disfarçar.


Porque, o que ameaça as ambições germânicas são os países latinos da união.


Contra a vitória de Hollande nas presidenciais francesas, que poderá ser a estocada final nessas ambições, a Alemanha merkeliana lança uma mensagem aos seus colegas euro-latinos.


Mensagem de ameaça e de chantagem, mensagem patética.


Mas os povos latinos europeus estão a dar sinais de que seguirão o rumo da sua antiquíssima história. A Alemanha jogou a sua última carta com o pacto anti-défice assinado no dia 2 de Março. Jogou e perdeu.


Poucos minutos depois da assinatura, Mariano Rajoy veio explicar que essa história do défice era uma questão a resolver pelo governo espanhol. Bye-bye Merkel, bye-bye Bruxelas!


Haverá provavelmente ainda muito sangue, suor e lágrimas, but the times they are changing!