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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

CONFLITO DE CIVILIZAÇÕES?


Em França, o ministro do Interior, um tipo chamado Claude Guéant provocou intencionalmente, com propósitos eleitoralistas, uma grande tempestade política.


Ser ministro do interior em qualquer país não é função que recomende ninguém e em França os exemplos de que me lembro são de facto sinistros, desde o famoso Raymond Marcelin até ao actual presidente Sarkozy. Por definição, esses tipos têm como principal tarefa as chamadas basses besognes, ou seja, os trabalhos sujos, são lacaios que mandam nas polícias e perseguem os mais indefesos, os mais pobres e desgraçados.


Este tal de Guéant foi, há poucos dias, à Assembleia Nacional francesa afirmar que as civilizações não são todas equivalentes, trocado por miúdos, para este ministro a civilização ocidental é a civilização ocidental, o resto não merece sequer o nome de civilização.


Não afirmou isto por acaso, o seu patrão Sarkozy está em grandes dificuldades para se fazer reeleger como presidente, com a candidata da extrema-direita Marine Le Pen a pisar-lhe os calcanhares nas sondagens. Existe um sério risco que o parceiro preferido da Merkel alemã não consiga sequer ir à 2ª volta das eleições.


Então, o Guéant, instruído pelo seu patrão, foi caçar nos terrenos da Le Pen, que são os da supremacia francesa em relação aos imigrantes norte-africanos, africanos e outros mais ou menos muçulmanos.


Disse o que tinha a dizer e logo de seguida um deputado socialista da Martinica caiu-lhe em cima e acusou-o praticamente de ser nazi. Os ministros colegas do Guéant ficaram aparentemente lívidos, abandonaram a assembleia, parece que isso tinha acontecido pela última vez há mais de cem anos.


A esquerda persistiu, não pede desculpa ao ministro acusado, para os socialistas franceses há valores comuns em todas as civilizações. Condenam as afirmações do ministro, choque de civilizações é coisa que conduz à guerra.


É verdade que a história lhes dá razão. Mas a história é uma coisa muito complicada.


Na história da chamada civilização ocidental, em todas as épocas existiram ideologias mais ou menos dominantes e ideologias dominadas e perseguidas.


Houve a ideologia católico-apostólico-romana que durou muitos séculos, que criou a inquisição, que queimou milhões de pessoas, que perseguiu tudo e todos que cheirassem a heresia, que enviou cruzados para Jerusalém e, mais tarde, navegadores, guerreiros e missionários para “evangelizarem” os povos bárbaros e pagãos de outros continentes. Gente encarregada de impor a civilização cristã ocidental.


Houve a ideologia liberal que fundou o capitalismo, os quais duram até hoje, houve a ideologia marxista-leninista que fundou o capitalismo de estado, que ainda hoje sobrevive, pelo menos, na República Popular da China. Houve outras ideologias que, embora menores, tiveram larga repercussão e influência.


Desde a Revolução Francesa, as clivagens entre ideologias alinhavam-se por uma fronteira mais larga, de um lado a esquerda progressista, democrática, revolucionária e proletária, do outro, a direita conservadora, burguesa e exploradora.


Tivemos a queda do muro de Berlim, o fim da URSS, a globalização, a união europeia, o euro, os grandes movimentos migratórios à procura do eldorado europeu.


Agora temos a crise do euro, a recessão das principais economias europeias, a próxima bancarrota da Grécia, de Portugal, da Itália e da Espanha, o fim do euro e da velha comunidade económica europeia.


E eis que emergem em todo o seu esplendor os chamados BRICS, as potências emergentes Brasil, Rússia, China, África do Sul, quase todas antigas colónias dos impérios europeus.


Dos antigos impérios coloniais europeus emergem ainda muitos outros países prometidos a auspicioso futuro, principalmente países do Pacífico que fazem salivar os EUA em decadência e descrente dos seus velhos aliados europeus.


Temos também a chamada primavera árabe que tem vindo a arrasar os regimes árabes com mais ou menos petróleo, que durante décadas foram fiéis lacaios das potências ocidentais. Primavera árabe, islamismo, islamismo civilização inferior à civilização ocidental, acrescentará o ministro francês.


Resumindo, está muita coisa a acontecer, há demasiadas incógnitas. Então o sr. Guéant, nas pisadas da sra. Marine Le Pen, sente-se na obrigação de gabar a superioridade da civilização ocidental.


Mas o que prevalece, quando se reflecte sobre as inúmeras afirmações e reacções dos políticos europeus mais ou menos importantes, é que essa gente perdeu o controle, não sabe o que fazer, essa gente está desorientada e entrou em pânico.


O novo presidente do parlamento europeu, que tanto quanto me lembro é socialista e foi eleito há poucos dias, esse cavalheiro do alto da sua arrogância germânica veio criticar o primeiro-ministro português por ter ido a Luanda pedir aos capitalistas angolanos que invistam nas privatizações, que tragam dinheiro para Portugal. Na sua douta opinião, isso é um sintoma de declínio de Portugal.


É um discurso entaramelado, o homem nem sequer se sabe exprimir, não joga a bota com a perdigota. Mas é presidente do parlamento europeu. Sobretudo é alemão e, assim sendo, acha-se no direito de se meter onde não é chamado. Provavelmente alguém o convenceu que a Grécia tinha passado a ser governada por um comissário alemão e que, assim sendo, tinha chegado a vez de a Alemanha passar a decidir com quem é que o governo português podia falar ou fazer negócios.


Pode também ter a ver com a nostalgia alemã de nunca ter conseguido manter uma colónia muito sua em África. Bem tentaram conquistar Angola, mas apanharam tareia do Roçadas e, logo a seguir, perderam o chamado Sudoeste Africano, agora Namíbia.


Fechemos o parêntesis das agruras alemãs e voltemos ao choque de civilizações.


Quem é que tem razão? O sr. Guéant ou os socialistas franceses?


Tenho muita pena, mas tenho que me render a algumas evidências.


Primeira evidência: a velha ética capitalista industrial europeia morreu. Era o capitalismo dos patrões de indústria, um sistema dominado por gente que explorava em seu proveito a mão-de-obra e as matérias primas baratas. Mas o sistema era regulado, auto-regulava-se. Civilização ocidental na sua versão burguesa revolucionária.


Hoje estamos à mercê de um novo capitalismo, capitalismo sem regras, capitalismo amoral e selvagem de grandes engenharias, vigarices e ladroagens financeiras, capitalismo anti-social ao qual apenas interessa o lucro fácil e rápido, capitalismo para o qual a democracia é apenas um pormenor facilmente contornável através da corrupção e da manipulação dos meios de comunicação social.


Segunda evidência: é este novo modelo de capitalismo, que não é diferente do capitalismo de estado chinês ou russo, que tenderá a globalizar-se à escala mundial.


Poderemos então falar de diferenças de civilização? Haverá hoje civilizações superiores e civilizações inferiores?


Mas de que é que estamos a falar?


Podemos falar de Hitler e de Churchill, podemos falar de Torquemada e de Lutero, de Estaline e de Ghandi, de Bashar al Assad, de Mubarak, de Ben Ali, de Nelson Mandela e reconhecer facilmente onde está a superioridade civilizacional.


Podemos comparar Angela Merkel com Barack Obama, com Sílvio Berlusconi, com Nicolas Sarkozy. Podemos comparar os patrões da união europeia com os patrões dos brics. Quais são as diferenças?


Superioridades civilizacionais elas existem, mas não têm a ver com diferenças de cultura, de cor da pele, de geografia, de religião, de riqueza.


A fronteira que separa os seres humanos continua a ser a mesma de sempre: é a linha que coloca em campos opostos os que estão a favor e os que estão contra a liberdade, a justiça, a democracia, a fraternidade, a solidariedade e o direito à revolta contra a opressão.


De que lado está o sr Guéant, o seu patrão Sarkozy e os patrões da união europeia?



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