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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

AS INIQUIDADES DO ORÇAMENTO SEGUNDO O DOUTOR CAVACO


O doutor Cavaco falou, pelo que percebi a ocasião foi o congresso da Ordem dos Economistas, essa venerável ordem responsável por tantas desordens.


Falou e, pela primeira vez em muitos e muitos anos, concordei com duas coisas que disse, e estou-me a referir à versão televisiva do discurso.


Primeira coisa, que seria aliás óbvia se vivêssemos em tempo de racionalidade e de normalidade política, o que não é o caso da situação presente, o presidente classificou de iníqua a distinção, introduzida na proposta de orçamento para o próximo ano, entre as obrigações fiscais dos assalariados do sector público e as dos colegas do sector privado. Os do público ficam sem subsídios de natal e de férias, na melhor das hipóteses durante os próximos dois anos, o pessoal do privado é “perdoado”.


A iniquidade de tudo isto salta à vista, bravo, sr. presidente, foi muito oportuna a sua intervenção.


O governo e o primeiro-ministro já tentaram justificar esta discrepância de critérios ditados pela metafísica ideia de austeridade, mas o presidente, pelos vistos, não ficou convencido. Dou-lhe todo o meu apoio.


De todas as explicações que os donos do governo avançaram em dias recentes, a única que me parece ter algum substracto é a do dr. Coelho quando ele explicou que os salários dos funcionários públicos são simultaneamente receita e despesa do Estado e que, assim sendo, os ditos funcionários tinham que pagar a dobrar.


Ou seja, presos por ter cão e presos por não ter, os funcionários são a vítima natural de todo o frenesim do orçamento-punição engendrado pela direita portuguesa no poder que quer ser mais troitkista do que a troika. Como perguntaria o Karl Valentim, para esta direita, os funcionários públicos, essa gente, será que não se pode exterminá-los? Ódio de classe? Vá-se lá saber, o dr. Salazar sempre tratou muito bem os seus funcionários.


A segunda observação do meritíssimo presidente, igualmente muito pertinente, refere-se aos sacrifícios que estão a ser exigidos aos reformados, sacrifícios que na sua opinião já foram para além dos limites. Mais uma vez, bravo, sr. presidente!
A questão dos reformados não é coisa pouca, é muito vasta, tem repercussões muito mais extensas e graves e não se resume a um problema de iniquidade, o que já seria muito grave. Vou apenas fazer algumas observações.


Por definição, o reformado sempre foi e parece que continua a ser aquele que já deu tudo o que tinha para dar e que, assim sendo, o melhor que tem a fazer é ficar sentado no seu canto enquanto não desaparece rapidamente.


O reformado não tem sindicato, não tem partido, não tem qualquer peso negocial nem reivindicativo, as pernas pesam demasiado, não vem para a rua manifestar, quando muito sai um bocadinho para jogar uma sueca.


Vítima designada, pois, ao reformado podem-lhe cortar na sopa, podem-lhe tirar os remédios, o médico, o hospital, ele vai continuar sentado no seu canto à espera que o levem para o crematório.


Nos tempos que correm, muita gente aspira a reformar-se porque está cansada, está farta do trabalho e dos chefes, mas não consegue, porque não tem a idade, porque não tem suficientes anos de serviço.


Outras pessoas, pelo contrário, gostariam de continuar a trabalhar, porque gostam do trabalho que fazem, porque não lhes apetece serem atirados para o caixote do lixo, porque se sentem motivados para continuar activos. Mas há uma lei inexorável que impede os funcionários públicos de continuarem, a trabalhar a partir duma certa idade. É a reforma-guilhotina, metes lá o pescoço e a lâmina cai-te em cima.


Essa idade da reforma-guilhotina continua a ser a mesma do tempo do saudoso dr. Salazar. Nessa época a esperança de vida no nascimento era de cerca de 50 anos, hoje é de quase 77 anos para os homens, mais de 82 para as mulheres.


Esta história do aumento da esperança de vida foi, aliás, aproveitada pelo governo do saudoso eng. Sócrates para cortar nas pensões de reforma e aumentar a idade mínima para se ter direito à reforma.


Ao mesmo tempo, o governo socrático desencadeou uma vasta propaganda sobre uma coisa chamada de envelhecimento “activo”, uma coisa cuja principal finalidade era justamente justificar o aumento da idade da reforma. Em resumo, a ideia, vamos lá meus senhores, mantenham-se activos, trabalhem mais anos, isso é bom para vocês e, de qualquer das maneiras não há alternativa, pois que a população portuguesa está muito envelhecida e nós precisamos de gente a descontar para a segurança social, blá, blá, blá…


A questão é que temos aqui vários embustes.


Primeiro embuste, o sr. Sócrates, ao mesmo tempo que nos vinha com esta treta do envelhecimento “activo”, proibiu os reformados da função pública de exercerem qualquer actividade remunerada no sector público.


Segundo embuste, o mesmo sr. Sócrates decretou cortes nas pensões dos reformados, cortes que agora estão a ser agravados pelo governo dos ayatollas troitkistas que tomaram conta disto.


Ou seja e resumindo, esta gente que nos desgoverna e que no seu íntimo de classe dirigente nos despreza profundamente, anuncia aos futuros reformados, mantenham-se activos, trabalhem mais anos, isso vale a pena porque depois vão ter uma bela reforma. Bela reforma, sim, reforma esburacada como o casaco dum mendigo, é este o futuro ao alcance de quem passou uma vida inteira a trabalhar e a descontar para a tal de reforma.


Segundo embuste, diz o sr. Coelho e os seus antecessores e os seus correligionários, desculpem lá, nós achamos que o envelhecimento activo é uma ideia óptima mas, quem estiver reformado não pode continuar a trabalhar.


Denegação do direito ao trabalho, tão simples como isso, discriminação social baseada na idade. Não é cor da pele, não é sexo, é a idade, estás velho, não podes continuar a trabalhar.


E aqui voltamos à tal iniquidade, justamente denunciada pelo nosso presidente, entre gente do sector público e gente do sector privado.


Um reformado do sector público não pode auferir remunerações por trabalho honesto prestado a entidades do dito sector público. Se quer trabalhar, que vá para o privado. Um reformado do sector privado pode continuar a trabalhar onde lhe aprouver. Aliás, nenhuma lei o obriga a reformar-se, a reforma-guilhotina é apenas para os funcionários públicos.


Este ataque aos reformados é sintomático do retrocesso civilizacional que vai tomando conta deste país que um dia fez uma revolução cheia de ideais humanistas.
Os reformados descontaram durante anos e anos, na expectativa de uma vida de lazer e de descanso sem preocupações. Estavam enganados.


Ainda bem que o doutor Cavaco se pronunciou.


Pronunciou-se de maneira muito crítica sobre os limites que, no seu entender, foram ultrapassados quanto a uma área tão sensível como é a dos direitos dos reformados. Área sensível em muitos aspectos, a principal das quais é que a imagem mais forte que pode ser dada por uma sociedade é a que nos é transmitida quanto ao modo como essa sociedade trata os seus seniores.


De maneira igualmente crítica, o doutor Cavaco rejeitou as desigualdades de tratamento entre assalariados do público e do privado.


Não acrescenta nada ao meu juízo acerca dos fundamentos dessa intervenção a eventual hipótese de que as preocupações que hoje exprimiu o sr. presidente, possam ter alguma relação com o facto de o doutor Cavaco Silva ser, além de presidente, antigo funcionário público e actual reformado do sector público.



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