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quinta-feira, 17 de março de 2011

JOVENS CARNE PARA CANHÃO, ELOGIO OFICIAL


Há um certo mimetismo na carreira política do Doutor Cavaco Silva.

Este senhor pontifica na vida política portuguesa desde há mais vinte anos, graças à reputação que conseguiu a certa altura de ser muito competente em finanças.

O sucesso que obteve sentado sobre essa reputação talvez tenha sido resultado dum inteligente oportunismo, talvez seja simples acaso sociológico. A verdade é que este senhor professor doutor sentiu-se a certa altura desafiado para as lides políticas e, um dia, suponho que o era o bom tempo que convidava, resolveu viajar até à Figueira da Foz para fazer a rodagem do seu carro. Coisa que agora já não se faz. Mas na altura do acontecimento veio mesmo a calhar.

Num país em que em geral o Estado e os que dele se aproveitam costumam gastar acima das suas possibilidades, perceber de finanças pode dar sinais de reputação que conduzem ao poder. Entre nós, alias, tivemos outra experiência semelhante que começou nos anos 20 e que se prolongou durante muitos e maus anos.

A história pós-rodagem do automóvel do sr. doutor é conhecida. Graças à misteriosa aura segundo a qual ele era alguém especialmente competente em finanças e tendo devidamente cumprido a sua obrigação de rodar o dito carro, o doutor economista tornou-se líder político.

Líder que, desde há mais de vinte anos não nos desampara a loja.

Ao fim de todos estes muitos anos, a questão que merece ser colocada a propósito da extraordinária carreira deste professor doutor é a seguinte: além de finanças, de que é que o homem percebe? E, será que percebe mesmo de finanças? Será que percebe alguma coisa de economia?
Talvez sejam questões disparatadas, porque a verdade mais provável é que, na pior das hipóteses, o doutor Cavaco não será menos competente do que a maioria dos nossos economistas encartados.

Donc, la question n’est pas là.

A questão que sempre me coloquei sobre este político profissional é outra.
Será que ele tem qualidades para ser um líder político moderno?

Ao doutor Cavaco sempre me pareceu que, para ser verdadeiramente um líder em sintonia com uma democracia moderna saída de um longo período de ditadura, lhe faltava aquela autoridade, aquela experiência, aquela sensibilidade de alguém que lutou pela democracia e pela liberdade.

É que no seu currículo não existe qualquer sinal nem dessa experiência, nem da mínima preocupação sobre o eventual incómodo que o terá minimanente perturbado durante a opressão salazarista.

Não existe o mínimo sinal de que tenha vivido a experiência vivida por muitos dos jovens seus contemporâneos que, esquecendo os pequenos interesses de um quotidiano exclusivamente apostado em um dia ser doutor, lutaram contra as ignomínias do salazarismo, contra a Pide, contra a censura, que foram vítimas da tortura e dos tribunais plenários, que se empenharam na eleição do General sem medo, que combateram a guerra colonial. O currículo mental do doutor Cavaco é omisso sobre tudo isto. Não há nada a fazer e o resultado está à vista.

O deficit político-curricular do doutor Cavaco ficou ontem, dia 15 de Março de 2011, completamente escarrapachado. Só não o verá quem não estiver interessado em ter chatices.

Este senhor, que é Presidente da República, consciente das suas limitações, devia ter tido a humildade de delegar em alguém bem credenciado a missão de falar sobre o início da guerra colonial, em Angola, esse acontecimento tão doloroso cujos cinquenta anos foram ontem assinalados.

Não é um acontecimento para comemorar. É um acontecimento para deplorar sim. Para condenar, para explicar, para condenar. Mas o doutor Cavaco deu-se ao trabalho de o comemorar, sentiu-se bem nessa missão.


O que é completamente chocante.

Na qualidade de Chefe de Estado, era o momento de ele vir pedir perdão por todos os crimes cometidos pelo Estado português, por todas vítimas inocentes, europeus e africanos, da política criminosa do Estado Novo de Salazar e de Caetano.

Mas, nessa cerimónia, o que se ouviu foram palavras sinistras que me fizeram lembrar as criminosas palavras responsáveis por muitas histórias dramáticas de gente conhecida e de gente desconhecida destruídas pela loucura assassina dos falcões salazaristas.


Ouvi o Presidente da República apelar, vejam bem a gravidade do acto, apelar aos jovens de hoje, jovens que do que precisam é de paz, que precisam de ter futuro e de um país com futuro, para que se empenhem em “missões e causas essenciais ao país” com a mesma coragem e “determinação” dos militares que participaram há 50 anos “na guerra do Ultramar”.


Devia haver um tribunal para julgar esta gente.


Um tribunal para julgar políticos que abusam do seu estatuto de impunidade, para julgar esta casta de gente que acha que tudo lhes é permitido, gente sem moral e sem consciência do significado colectivo das altas responsabilidades que se comprometeram a assumir.


Na escola primária, tinha um colega, também se chamava Mário. Era alto e robusto, era estimado, era calmo, vivia perto da escola, o pai era motorista. Nunca me esquecerei dele.


Fomos às sortes no mesmo ano. O Mário foi um dos primeiros a morrer lá nos confins, no norte de Angola. Morreu “determinado” por uma “causa essencial ao país“, a "guerra do Ultramar”. Desconhecia as razões de todas essas tretas criminosas, mas não houve ninguém para o salvar. Lá ficou, ceifado na sua vida aos 20 anos, como tantos outros.


Nunca perdoarei este epitáfio oficial pronunciado pelo doutor Cavaco em nome de um Estado que nunca poderá ser absolvido pela sua criminosa guerra e as várias gerações de africanos e de europeus vítimas em territórios mártires de África.


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