PEDALAR É PRECISO!

sábado, 30 de outubro de 2010

VIAJAR, SOBREVIVER


Sexta-feira, não sei bem porquê, parece ser dia aziago, deve haver alguma explicação. Todos temos as nossas superstições, superstição quer dizer medo. Medo é o normal da condição humana.
Quem é que não nunca acordou com o pressentimento de que vai ser atropelado ou de que lhe vão assaltar a casa ou que o patrão o vai despedir? Há dias de superstições, porque mentalmente representamos dias que parecem mais propícios do que outros. Tem a ver com histórias que nos contaram quando ainda chuchávamos no dedo, coisas que fomos ouvindo. Somos muito dependentes desses frágeis anos.

Não tenho nenhum preconceito especial em relação às sextas-feiras, mas a de hoje começou muito mal, um dilúvio interminável, parecia que vinha tudo abaixo, o caos. Será que o caos liberta?

Mas o dia lá foi correndo, para a tarde começou a haver sol, afinal, o tal de dilúvio, parece que, por artes mágicas, alguém tinha conseguido acalmá-lo.
Mas fica sempre aquele sentimento, perguntamo-nos e se tivesse continuado a chover mais meia hora?

É como a história do deficit, do orçamento, da falta de dinheiro, da bancarrota, do bando do Sócrates… O que é que se pode esperar? Está toda agente conformada, resignada, impotente. Inevitavelmente, perguntamo-nos: será que há algum piloto no avião?

Mas a verdade é que as sextas-feiras, por pior que seja a imagem que nós os que somos supersticiosos delas possamos ter, mesmo as sextas-feiras, dizia eu, podem trazer uma face redentora destes tristes dias de humanidade sem esperança.
Inacreditável.

A redenção desta assustadora sexta-feira encontrei-a, não sou como o S. Paulo da estrada de Damasco, nada me foi revelado, mas encontrei a revelação, imaginem aonde? Na Gulbenkian. É verdade, na Gulbenkian, naquele enorme e sofisticado anfiteatro com todo o pessoal que está ali para ouvir música, é isso que é suposto acontecer, a maior parte gente engravatada. Vamos abstrair.

O prato forte do concerto de hoje ao fim da tarde era o Requiem de Gabriel Fauré.
Não conheço nenhuma música como esta, provavelmente era por isso que eu lá estava no meio do pessoal mais ou menos engravatado.


É uma música única por muitas razões e sobre isso apenas alguns apontamentos.
Normalmente, quem está na primeira fila da orquestra são os violinos, com o primeiro, o segundo e todos os outros, são eles que mandam na orquestra. Aqui não.

Na primeira fila da orquestra que toca o Requiem de Gabriel Fauré, estão as chamadas violas de arco (ainda não se chegou a uma conclusão unânime acerca da designação portuguesa correcta desses instrumentos, que são um pouco maiores do que o violino e têm um som mais grave). Normalmente, as violas ficam entre o naipe dos violinos e o dos violoncelos.

Mas neste requiem, quem dá a nota são as violas, acompanhadas em primeiro lugar pelos violoncelos e pelos contrabaixos. Timbres graves, profundos eis a dominante.
Mas aqui as estrelas de Fauré são as vozes humanas. E, em primeiro lugar, as vozes do coro dos sopranos e dos tenores.

Comparado com todos os outros requiems conhecidos, este é muito especial. É sobre a morte, claro, mas é sobretudo um lamento, uma tristeza pelos desencontros por causa das tristezas da vida. Na história da música, não há nada de parecido com isto. Nem o Mozart chegou lá perto.

E depois, perguntará o ocasional leitor? O que é que eu tenho a ver com isto? Tem muito a ver, caro leitor.

Em primeiro lugar, porque é o meu requiem, aquele que eu amo.

Além disso, que não é pouca coisa, o espectáculo a que tive o privilégio de assistir hoje nesta sexta-feira quase diluviana e quiçá aziaga, confirmou qualquer coisa de que desconfiava já há algum tempo.

A coisa é o seguinte.

Não sendo crítico musical e nada qualificado para avaliar seja o que for em matéria de música dita clássica, deste espectáculo gostaria de registar o que mais me impressionou: as vozes extraordinárias das jovens sopranos do coro, e principalmente a voz e a presenças extra-terrestres da soprano Ana Quintans, de quem nunca tinha ouvido falar.

Ora, Ana Quintans é portuguesa e está a caminho de ser uma estrela dos palcos do canto.


Erro meu, distracção minha, ignorância, minha culpa, minha máxima culpa.


É que andamos todos distraídos, ocupados com coisas sem importância e não nos damos conta que o mundo está sempre a acontecer e a mudar.


Não nos damos conta, por exemplo, de que muitos dos nossos jovens vão indo por esse mundo fora à procura de oportunidades, à procura do lugar das suas ambições.


Não realizamos que, com esta letargia de morte em que parece ter mergulhado esta espécie de país, sobreviver passou a ser sinónimo de ressuscitar viajando para além de todas fronteiras.


É o velho destino português das jovens gerações sem futuro. Talvez alguém as ajude a ajudarem-se a si próprias.


Sem comentários: