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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O IDIOTA E A PIETÀ

Estava a começar a ver o Rashomon do Kurosava, a cena inicial do templo em ruínas, a bendita chuvada que cria a trama do filme, com o monge budista e o lenhador que começam a contar a um outro tipo, que não se sabe o que é que faz, a história do samurai que apareceu morto na floresta.
É um filme sobre o jogo da verdade, a verdade não existe, cada um inventa a que lhe convém, mas a esperança na humanidade renasce sempre, é o que diz, no fim do filme, a cena do lenhador com o bebé nos braços, é um pouco o sentido do filme.

Neste filme, do que gostava mais era da chuva forte nas ruínas que ritma a conversa daqueles três. Começava a ficar embalado para ver a história até ao fim, mas de repente tocaram à porta.

Abrir a porta a alguém tornou-se raro, mesmo improvável. As pessoas já não se visitam, a não ser que sejam convidadas, telefonam-se, encontram-se na net, emailam-se, combinam encontrar-se fora, encontram-se nos intervalos do trabalho quando vão comer ou beber qualquer coisa à pressa.
O elevador há muito que estava avariado, isso já fazia parte do décor, alguém que se dava ao trabalho de subir as escadas até ao sexto andar para tocar à campainha, quem seria?

Ficou mudo, hirto, sem saber o que dizer. Era a vizinha do terceiro andar, há muito que não a via.

Quando às vezes se cruzava com ela na escada, tentava imaginar que idade teria, talvez mais de setenta, mas a verdade é que não sabia avaliar para além duma certa idade. Nela, tudo era extraordinário, não apenas porque continuava a ser uma mulher muito bonita. Tinha estilo, olhar desafiante mas amigável, não era agressiva antes segura.

Tinha uma espécie de aura, de luz, diferente daquelas fosforescências que se representam à volta da cabeça dos santos. A aura dela era a da Maria Callas quando cantava vestida de Norma. Era isso.

Nos momentos em que se cruzavam, sentia a necessidade de meter conversa, de interpelá-la. Mas ficava intimidado, era como se a mulher não pertencesse ali. Meter conversa como? Não era uma cena de discoteca. Mas a sua curiosidade ia aumentando. Ela irradiava um porte inatingível, um esboço de sorriso de Gioconda. Provavelmente somava séculos de linhagem a aprender a estar, a andar, como brilhar no mundo, em sociedade, a arte de seduzir.

E agora este surpreendente objecto do seu fascínio e curiosidade estava ali à porta, mas instintivamente sentiu que ela tinha mudado, como se tivesse envelhecido de repente.

- Desculpe incomodá-lo, a minha nora telefonou-me, o meu filho está muito doente, tenho que respirar com alguém ao meu lado. Talvez possamos conversar, não sei o que fazer…Peço desculpa.
Atrapalhado, convidou-a a entrar, ela sentou-se no sofá, foi-lhe buscar um copo de água.

- É curioso que esteja a ver um filme do Kurosawa, de que gosto muito. Sempre fui cinéfila. Quando vivia em Paris, passava o tempo na cinemateca de Chaillot, acho que vi os filmes todos, mas o meu preferido do Kurosawa é um filme de que nunca se fala, é O Idiota que foi feito um ano depois do Rashomon, no princípio dos anos 50. E os actores dos dois filmes são praticamente os mesmos, o que faz de samurai é o actor que representa o papel do príncipe Mychkine.

- Nunca tinha ouvido falar desse filme do Kurosawa, parece-me que o Gérard Philippe entrou numa versão francesa do livro do Dostoiewsky, mas nunca a vi…

- Sim, o Gérard Philippe, os franceses…Sabe, as histórias do Dostoiewsky pertencem a outro planeta, o Kurosawa percebeu isso muito bem, é um filme japonês, não é russo, mas provavelmente seria preciso alguém como o Tarkowsky para fazer um filme russo d’ O Idiota… Isto não terá a ver com nacionalidades, serão talvez afinidades escondidas que se transmitem no tempo apenas entre pessoas que vêm do mesmo planeta… Desculpe ter interrompido o seu filme e estar para aqui a filosofar.

- Conheço mal os escritores russos, li uma vez uma coisa do Turgueniev, já não me lembro do título…

- O Dostoiewsky detestava o Turgueniev, era demasiado parisiense para a sua alma russa, eram incompatíveis. O Dostoiewsky era muito fascinado pela figura do Cristo e há quem diga que o príncipe Mychkine reproduziria a imagem do Cristo, um Messias de quem todos estavam à espera de salvação, amor ou dinheiro…
Mas, Mychkyne não tinha pai, não tinha mãe e, no final, todos os que o cortejavam ou o amavam cortam com ele, e o príncipe volta para a sua solidão… para a sua loucura…para a sua tristeza… Choca-me a tristeza do príncipe idiota que não era deste mundo… É uma coincidência estranha ter vindo bater à sua porta e estarmos aqui a falar do Dostoiewsky e dos filmes do Kurosawa…

Gostava de poder interrompê-la, oferecer-lhe qualquer coisa para beber, estava quase em pânico, queria que ela sorrisse como quando se cruzavam nas escadas, mas sentiu que esse tempo tinha acabado.

- Sabe, a tristeza pode ser uma alegre companheira, enquanto nos acompanha vamo-nos olhando por dentro, vamo-nos reconhecendo na solidão dos dias, ficamos mais fortes...Pode não ser dramático, podem ser apenas estados de alma, percepções sem espaço, deambulando sozinhas na nossa mente…Mas com o meu filho lá longe, não consigo deambular sozinha, por isso, vim bater à sua porta…O meu filho que talvez esteja em agonia, foi para a Argentina há muitos anos, passei tanto tempo sem o ver…A minha tristeza é sobre qual será a imagem que ele guardou da sua mãe. Sinto que não terei resposta…Sabe, a imagem que guardei da minha mãe é muito forte, continua muito presente, ela cantava arrumando a casa, ia passando a mão pelos meus cabelos, sempre de sorriso aberto e alegre, enérgico e doce… ela tinha dezoito anos, é essa a minha imagem de uma mãe. A imagem que me alimentou até a esta tristeza pelo meu filho.

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