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quinta-feira, 7 de maio de 2009

COINCIDÊNCIAS


A noite estava morna, era verão, não se ouviam grilos, o que era estranho. O bairro tinha muitos quintais, vivia ali gente com posses de classe média remediada, era sossegado. Mas não havia grilos a cantar. Après tout, qu’est-ce que ça peut faire?

- E, então, o concerto ?
- Qual concerto ? Ah ! sim o Haydn, estava a pensar noutra coisa…Sabes, gosto mais de ir ao cinema. Não prestei muita atenção.
- Era o concerto em dó maior, a violoncelista fazia lembrar a Jacqueline Dupré, como é que já não te lembras? O que é que isso tem a ver com cinema, são coisas diferentes. Até amanhã.

Enfiou a direito e a descer, era só calçada já um bocado puída por muitos sapatos e histórias antigas. Amanhã tinha que se levantar cedo, se calhar o melhor era ter ficado em casa feito parvo a olhar para a televisão, sempre descansava. A Mariana era uma gaja muito fechada lá no canto dela, comunicar como, como? O que é que se passava na cabeça dela? O que é que se passa na cabeça das pessoas? Amanhã, depois do trabalho, tinha que ir á piscina esbracejar fazer algum exercício. Estava a ficar velho que porra.

Não havia ninguém na rua só o barulho dos automóveis o costume, na cabeça ia ouvindo o terceiro andamento do concerto do Haydn. Apetecia-lhe ir viver para o Alentejo.

Foi à internet pesquisar sobre a Dupré. Sempre tinha achado um bocado estranho que ela tivesse um nome francês, a família dela era mesmo inglesa, a mãe era professora de piano, o pai era very typical. Primeira surpresa: o nome completo não era inteiramente francês: Jacqueline Mary Dupré, isso da Mary não sabia.

Dupré era uma força da natureza, mas foi a natureza que a tramou. Aos 28 anos, tudo acabou, esclerose múltipla, acabaram os concertos, longa agonia dos anos, quase quinze anos, sheet! Em 1987, o pobre corpo de Dupré extingue-se.

1987, isso não me diz nada? E esclerose múltipla?

A resposta foi rápida, Zeca Afonso, 1987, esclerose múltipla.

No silêncio relativo da noite, com os carros lá fora no seu estrondo, ficou a pensar por que é que haveria estas coincidências de maus destinos de entes amados, falta de imaginação, burrice dos deuses?

Interrogou a internet sobre as suas dúvidas metafísicas. As respostas foram enigmáticas. Ficou a saber que a carreira da Dupré começou a brilhar aos 11 anos quando ela ganhou o 1º prémio do concurso Suggia. O quê? Suggia, a Guilhermina Suggia do Porto e do Pablo Casals? Suggia, considerada o maior violoncelista vivo em mil novecentos e poucos?

Sim, confirmou a internet, foi ela quem instituiu em testamento, com o dinheiro da venda dos seus dois Stradivarius, aquele prémio com o seu nome.
Síntese do oráculo intercomunicacional: Suggia abriu o caminho a Dupré, Dupré continuou Suggia. A portuguesa acabou com o monopólio masculino do violoncelo, criou o prémio que lançou Dupré. Dupré valorizou a herança da portuguesa para além de todas as esperanças, elevando a arte de Haydn, Elgar, Dvorak e Schumann aos píncaros do impossível.

Zeca Afonso continuou os Menanos e os Bettencourts do fado de Coimbra mas principalmente fez subir a música aos everestes ainda mais altos da fraternidade.

Demasiado, eram demasiadas coincidências. Tinha que descansar. Amanhã provavelmente iria ao cinema talvez houvesse um filme que merecesse ser visto. Amanhã será outro dia disse a Vivien Leigh. E adormeceu pensando na Mariana.

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