PEDALAR É PRECISO!

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Uma loira sorumbática


Quando ia pela rua principalmente na Baixa onde havia sempre uma grande concentração de gente nos passeios, gente a mais para seu gosto, gente que não sabia muito bem andar no meio de tanta gente, com carros estacionados nos passeios, em grande gincana. Dava encontrões naquela malta desconhecida, quando vinha direito a ele um gajo ou uma gaja mal encarados, com ar talvez ameaçador, nunca se sabe. Dava-lhes uns encontrões. Se fosse mais pequeno e fraquitolas, se calhar não tinha coragem para isso, desviava-se para o lado, não ia enfrentar todos aqueles transeuntes adversos assim de peito aberto e ombros ao alto. Como era forte, aquilo acabava por ser um bom exercício. Na cidade e fora dela impera sempre a lei do mais forte, essa é que é a verdade, nada a fazer, ou bates ou és esmagado, tens que te treinar para a guerra urbana. Nunca se sabe o dia de amanhã.

Resolveu ir almoçar.

Não via a Mariana há quase duas semanas. Ela tinha-lhe telefonado a dizer que ia visitar a família, os avós que vivem lá para o norte, Tràs-os-Montes, Barca d’Alva, Torre de Moncorvo? Não, Barca d’Alva não é bem Tràs-os-Montes é mais Beira Alta junto ao Douro, na margem esquerda. Dantes chegava lá o comboio da linha do Douro vindo do Porto e depois, às vezes, havia umas ligações para Espanha. Torre de Moncorvo é mais a norte, talvez seja transmontana. O que é que isso interessa?

Lembrava-se de Barca d’Alva quando era miúdo e ia lá nas férias com a mãe. Os avós tinham lá uma quinta junto ao Douro, isso é que era vida. Agora o pessoal dali que não tinha quintas e precisava de ganhar a vida tinha ido praticamente todo embora, ficou um deserto sinistro, o comboio acabou.

Porque é que a gente vai para onde há imensa outra gente aos encontrões, que vive apertada nas grandes gaiolas suburbanas e nos engarrafamentos, em vez de ficar no remanso dos sítios que conhecem ou que os pais deles conheciam, e onde poderiam passear livremente ao ar livre e sem encontrões?


A Mariana estava um bocado chateada, foi isso que percebeu, no emprego as coisas estavam complicadas, demasiado stress e então decidiu meter umas férias, um brake disse ela.

Apesar de as famílias dele e dela serem praticamente conterrâneas, a Mariana tinha sido um encontro fortuito na confusão desagradável de Lisboa. A Mariana era uma loira sorumbática, não se dava muito por ela ao princípio.

Loira sorumbática, sim e, por isso, não tinha nada a ver com o retrato robô das loiras.





As loiras são naturalmente extrovertidas, dão nas vistas, procuram atrair os olhares, para isso maquilham-se e pintam o cabelo, procuram ser elegantes e bem parecidas. Não é porque sejam especialmente felizes, têm certamente dificuldades de relacionamento com os outros. Gostava dessas louras problemáticas, simpatizava com elas, mesmo quando não eram especialmente bonitas. A Mariana quando a conheceu, e isso não mudou, não era extrovertida antes pelo contrário, intimidava e estava-se nas tintas para atrair os olhares. Era uma trintona loira sorumbática, distante. Tudo isso o interessou, mas só à segunda tentativa de encontro é que se deu conta disso.

Quando se vai na rua atrás duma mulher que não é especialmente espampanante, e não se vai propriamente no engate mas por pura curiosidade e exercício de conquista urbana e, quando se aborda a perseguida, ela nos olha com olhar vítreo, o que é se faz? On se dégonfle?

Foi o que o que ele fez, meteu o rabo entre as pernas e abandonou a corrida em pleno Chiado. A mulher era loira, usava uns óculos de intelectual, o loiro parecia natural, o vestido era alegre mas sóbrio em tons de azul. Tinha óculos escuros e levava um chapéu de palha com uma barra amarela. Foi o detalhe da barra amarela que lhe chamou a atenção e lá foi ele atrás feito parvo.

Tudo isso aconteceu no princípio da Primavera quando Março começa a aquecer, apetece ir à praia e as mulheres aproveitam para aparecer atrevidas. Mas a loira de olhar vítreo e distante, perseguida Chiado acima, não tinha nada de atrevido.

As suas reflexões queriam dizer que estava com saudades da Mariana. Acabou o almoço, pediu a conta.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

AS QUARENTONAS DE CANNES


No festival de Cannes, que acabou há poucos dias, o principal acontecimento mediático acabou por ser o espectáculo protagonizado por duas actrizes quarentonas, a francesa Sophie Marceau e a italiana Monica Bellucci, na famosa passadeira vermelha mediterrânica. Foram a Cannes promover o filme Ne te retournes pas de que são protagonistas e que, segundo parece, é um drama sobre troca de identidades, em que uma delas deixa de ser quem é e passa ser a outra. Não sei muito bem como é que isso funciona.

Passearam na passerelle de mão dada e quase se beijaram (na boca, claro), grande frisson para os fotógrafos. Estavam lindíssimas vestidas de vermelho. O filme não estava a concurso, mas mesmo assim elas tomaram conta do festival. E não apenas do festival. Na mesma altura causaram um frisson ainda maior, que não podia deixar de ser mundial, ao aparecerem na capa da revista parisiense Paris Match, nuas, serenamente e amigavelmente abraçadas uma à outra. Os jornais portugueses não ligaram à coisa. Já estamos habituados a estes desfasamentos, preferem falar do BPN e do BPP e do B de P, e sei lá mais o quê.

A imagem das duas mulheres na capa não é apenas extraordinária. Ela é principalmente um magnífico sinal dos tempos, que contrariam estes tempos em que só se fala de crise. Abaixo a crise e os que dela se aproveitam!

Vejamos a capa, olhemos para ela. A Mónica tem 45, a Sophie 42 anos. Estão no máximo esplendor da sua maturidade. São artistas, são mulheres, são mães. Mães tardias, como são cada vez mais as mães do nosso tempo. A Mónica teve um filho aos 40, fez-se fotografar nua quando estava grávida o que fez tremer as paredes – imaginem – do Vaticano. Não se esqueçam que a mulher é italiana. A Sophie teve uma filha aos 36 anos.

Não têm ar de estar a pedir autorização para aquilo que andam a fazer. São senhoras do seu nariz e do seu destino, não há padres, nem maridos, nem empresários, nem patrões a dar ordens. Estão divertidas, estão vivas e são um regalo para os olhos. Alguns falam de Weekend Lesbo Fantasy, mas o que é que isso tem a ver? Não percebem nada.

A verdade crua e extraordinária é que estas duas mulheres noutra altura teriam ido parar à cadeia, talvez acabassem estorricadas numa fogueira ou linchadas. Certo e seguro, nunca teriam conseguido chegar vivas aos 40 anos. E, quanto àquele esplendoroso e maravilhoso descaramento, mesmo sendo estrelas de cinema, o que é que acham que lhes teria acontecido?

Há cem anos, em Portugal, as pessoas viviam em média até aos 40 anos. A Sophie e a Mónica não só já lhes passaram à frente em matéria de anos de sobrevivência, como continuam frescas que nem uma alface. Aleluia!

Lembram-se da pobre balzaquiana, a mulher de trinta anos condenada ao celibato e à solidão. Lembram-se das mulheres que já nem sequer sabiam muito bem que idade tinham, com uma catrefa de filhos à volta a quem dar de comer? Triste fado o desses tempos que não são assim tão longínquos.




Infelizmente, o regozijo pela Humanidade, que da lei da morte se vai libertando em vida, tem mesmo os seus limites. Quando penso nas mulheres do Botswana que vivem, em média, apenas 33 anos e comparo essa média com a média das mulheres japonesas e os seus 86 anos, o que é que devo pensar?





terça-feira, 26 de maio de 2009

LA PIPE DE TATI


Não gosto especialmente do Tati autor e actor de filmes mímicos sobre os malefícios e as incongruências dos tempos modernos. Por mim, prefiro o Charlie Chaplin cuja crítica à mecanização e outros “malefícios” me parece ter ido muito mais longe. Aliás, os autores e actores americanos de comédia cinematográfica de non-sense foram em geral muito eficazes e conseguiram durante muito tempo fidelizar plateias que amavam esse género cinematográfico. Basta lembrar Buster Keaton, Harold Lloyd, W. C. Fields e os Marx Brothers. Gostos são gostos e o que interessa para o caso é que o Jacques é uma grande referência do cinema europeu e um grande criador.


Vem isto a propósito de uma cena que aconteceu há poucas semanas. Essa cena não é apenas caricata. Em Paris, o departamento de publicidade da RATP, que é a empresa que explora todos os transportes urbanos da cidade, impôs a supressão do cachimbo de Jacques Tati num cartaz onde era anunciada uma exposição sobre o cineasta francês. Por imposição dos censores, o cachimbo foi substituído por uma espécie de moinho de papel.




Motivos: os que impõe a lei que, desde há 18 anos proíbe a publicidade directa ou indirecta ao álcool e ao tabaco.

Pouco tempo depois, novo episódio censório e também parisiense. O cigarro exibido por Audrey Tautou no cartaz do filme Coco avant Chanel, em que interpreta o papel da célebre criadora da moda francesa, é também suprimido. O motivo continua a ser o mesmo, a lei antitabagista.

Estas censuras, que me lembre, nunca tinham acontecido antes. Fazem-me lembrar tristes episódios de derivas totalitárias já bastante antigas e pensar em derivas mais actuais.

O que é que distingue o zelo anti-tabagista dos funcionários ratpianos parisienses do zelo dos funcionários dedicados ao camarada José Staline quando este os mandava apagar o Trotsky ou outros concorrentes de fotografias que tinham fixado para a posteridade os camaradas bolcheviques?

Há oitenta anos era mais difícil concretizar esses apagões fotográficos, ficava sempre algum rasto e, por isso, o camarada dos bigodes passou sempre à fase seguinte que era, por exemplo, a picareta no crânio do Trotsky lá longe no México. Trêve de plaisanterie!

Manipulações, manipulações! Assistimos a isso todos os dias, mas não é apenas na televisão. O nosso quotidiano está cheio de belas tecnologias, como, por exemplo, esta que estou a utilizar neste blog.

Pode-se, por exemplo, gravar conversas sem que os falantes saibam. A professora, o professor que falam aos seus alunos na aula podem estar seguros de que ninguém os está a gravar? Episódios recentes comprovam que não. Gravar é o contrário de apagar (la pipe de Jacques, por exemplo) mas pode também significar manipular. Que devem fazer os professores? Ler nas aulas as lições que escreveram previamente em casa, não se desviando um centímetro do guião?


Derivas, derivas! E o paternalismo censório de quem faz aprovar leis para impor às pessoas comportamentos ditos saudáveis, mas que, por outro lado, se está nas tintas para os muitos e são cada vez mais que estão no desemprego, que habitam ou trabalham em sítios completamente degradados, que comem o que vem à rede? A saúde deles também é importante? Acham que, se lhes apetecer e tiverem dinheiro para isso, talvez possam fumar um cigarrito?


Segundo as últimas notícias, um conselho francês de ética publicitária decidiu afinal aceitar a representação em futuras campanhas publicitárias de cachimbos, charutos e cigarros, desde que tenham “uma finalidade cultural e artística” e que as pessoas representadas “já tenham morrido”. Condição sine qua non sem dúvida, esta, e que muito provavelmente no espírito dos seus autores deverá servir para comprovar os malefícios do tabaco. Afinal, as eméritas personagens fumadoras acabaram ou não por morrer?


Problema, problema. É que o Jacques Tati viveu entre 1907 e 1982 e a Coco Chanel entre 1883 e 1971. Façam as contas. Serão estes distintos tabagistas um bom exemplo dos ditos malefícios e também da consequente necessidade de se recorrer a derivas censórias e a outras manipulações do mesmo accabit?

quinta-feira, 21 de maio de 2009

WALDBUHNE


Uma notícia que li há pouco tempo dava conta que em Berlim há uma brigada de caçadores urbanos que, quando cai a noite, se dedicam aos javalis. Em Portugal, segundo parece, há cada vez mais javalis, mas ignoro se existem expedições nocturnas deste tipo.

Berlim é provavelmente a cidade mais verde da Europa e isso atrai os javalis. Estimativas oficiais indicam que existirão entre 5.000 a 8.000 indivíduos dessa espécie domiciliados na capital alemã. Os bichos têm vindo a tornar-se cada vez mais atrevidos e já não investem apenas as áreas mais arborizadas, mais periféricas, e chegam mesmo nas suas investidas praticamente até ao centro da cidade, até, imaginem, à célebre AlexanderPlatz.

Waldebuhn é um dos locais mais verdes de Berlim, mas não consta que a invasão de javalis lá tenha chegado. Waldebuhn é um famoso anfiteatro, mandado construir por Hitler para os Jogos Olímpicos de 1936. É um anfiteatro estilo grego onde, desde 1961, acontecem principalmente no Verão grandes espectáculos musicais. A Filarmónica de Berlim, por exemplo, todos os anos ali apresenta concertos com reportório popular. O anfiteatro está sempre cheio, cerca de vinte mil espectadores rodeados pelo verde da floresta, bem instalados, muitos com alto estilo de vida degustando caviar acompanhado de autêntico champanhe. Ouvem, por exemplo, Rimsky-Korsakov e a sua Sherezade, já assisti a isso no Mezzo.

Mas, em 1965, houve uma espécie de invasão de javalis nesse templo verde da música, quando os Rolligs Stones lá foram dar um concerto. A coisa correu muito mal, porque uma parte dos espectadores se envolveu numa tremenda batalha com a polícia, de que resultaram, para além de não sei quantos feridos, muitas destruições. O anfiteatro ficou fechado durante vários anos, só reabrindo em 1969.

Em tempo de gripe porcina, pode-se relacionar esta história de javalis com as ameaças de pandemia. Mas para mim estas invasões são principalmente simbólicas. Vejo nelas a vulnerabilidade das cidades humanas face a poderes destruidores e imprevisíveis.
No caso específico da Alemanha, isso leva-me a pensar em toda a história terrível, em que não era apenas o destino da Alemanha que estava em causa, que vai do final da guerra em 1918 e do esmagamento da sublevação espartakista em 1919 à República de Weimar, terminando com a subida ao poder de Hitler em 1933. A crise de 1929 não começou nesse ano, de facto começou dez anos antes e só terminou em 1945 com a derrota do nazismo e do fascismo. Voilà!

E depois há o outro lado, mais promissor, dessa velha e terrível crise: os dourados anos 20, a paixão alemã pelo cinema e pelo teatro, a arquitectura Backhaus, os livros de grandes criadores, Thomas Mann, Alfred Doblin, Robert Musil, Herman Hess, a paixão pelo jazz, Kurt Weil, Brecht. É uma época gloriosa, sabe-se lá, talvez a mais simpática da história da Alemanha.

Nesse cortejo de notabilidades que se revelaram então, os Comedian Harmonists foram o principal arquétipo da música popular alemã aberta a outras músicas e, em particular, ao Jazz. Eram seis cantores que, a partir de 1927, se tornaram conhecidos muito para além da Alemanha, tendo aparecido em 21 filmes realizados nos EUA. Mas a sua carreira terminou abruptamente em 1934 por ordem dos nazis.

Um genial showman, o barítono Max Raabe, recuperou a tradição harmonist e de outros músicos alemães dos anos 20/30. Em 1986, criou a Palast Orchester, com onze músicos homens e uma violinista, grandes músicos vestidos a preceito, e inventou um novo tipo de espectáculo musical, sofisticado e ironicamente cosmopolita. Espero que venham a Portugal, já apareceram em todos os lugares importantes do mundo, inclusive no tal anfiteatro de Waldebuhne, onde, sem javalis, mas com chuva, celebraram em Agosto de 2006 o seu vigésimo aniversário. Apreciem o espectáculo, o preço do DVD é mais do que merecido.



domingo, 17 de maio de 2009

KAFEEHAUS





No domingo fui ver a moda no Chiado, havia umas barraquinhas na rua Anchieta onde se vendiam alguns livros, quinquilharias e também roupas. Comprei uma camisinha branca em algodão.

Estava à espera de desfiles na rua Garrett, desfiles de manequins de gente muito bem vestida. Era com isso que estava a contar, não sei se influenciado pelo patrono da rua que como se sabe era um dandy, árbitro das elegâncias era o que se dizia dantes. Ainda não foi desta, mas não perdi a esperança de, sabe-se lá, qualquer dia termos mulheres bem aperaltadas e flamejantes desfilando para o povo. Alegria, alegria!

Tinha acabado de almoçar no KafeeHaus e inesperadamente descobri que afinal havia desfile. Um desfile bastante animado por sinal, com tambores, gente não especialmente bem vestida mas com bandeirolas e que gritavam de maneira simpática palavras de ordem. Os meus ouvidos ficaram agradavelmente surpreendidos com aquelas vozes que se misturavam com o ruído de fundo das percussões. No final do cortejo, um amigo meu bastante dado a manifestações e a solidariedades com as diversidades e os oprimidos lá vinha com ar contente integrado num grupo de mulheres ucranianas.

Percebi então que se tratava duma demonstração imigrante. Um Chiado cheio de diversidade é divertido, pensei eu, é do que precisamos. E porque não um Chiado e uma Lisboa cosmopolitas?

Temos os imigrantes temos os muitos turistas que tiram fotografias na cadeira ao lado do Fernando Pessoa. Muitos turistas, muitos imigrantes, donc, diversidade talvez cosmopolitismo. Há a FNAC claro. E o KafeeHaus? O Chiado está a mudar. E Lisboa?

Quase paredes meias com a Vida Portuguesa da Catarina Portas, numa feliz e cosmopolita aliança entre local e global, o café vienense criou um lugar especialmente acolhedor. O pensamento gastronómico é inventivo e moderno, a comida é saudável e saborosa, pode-se beber um BSE em vez do riesling que é mais caro. Não é comida italiana nem chinesa disfarçada de japonesa, não tem o cozido à portuguesa para as famílias dos domingos. O lugar é hospitaleiro com gente nova eficiente e simpática.

Lugar também cinéfilo, o que acrescenta muito à refeição. É que enquanto vamos alimentando o corpo, a colecção de cartazes afixados na parede alimenta-nos o espírito. Muita matéria para reflexão.

Protegido junto ao canto da parede sobre o lado direito, admiramos o Oskar Werner. O admirável – passe o pleonasmo – actor de Jules et Jim e de A Nave dos Loucos aparece aqui disfarçado de Mozart. Será um filme? O título do cartaz é Mozart im Kino, fica-se na dúvida sobre o que será aquela representação. Mas a coisa é ostensivamente vienense. Cartazes sobre outros filmes fazem companhia ao Mozart e ao Werner e até lá está afixado um que tem a ver com uma recente exposição fotográfica vienense sobre Grace Kelly.

Mas a atracção principal da colecção são os cartazes d’O Terceiro Homem de Carol Reed.

Por uma daquelas coincidências que têm a ver com o facto de que o tempo passa depressa demais, este filme perfaz agora 60 anos tendo ganho o festival de Cannes e o Óscar de melhor fotografia em 1949. Foi nomeado para outros Óscares que não ganhou. É um filme sobre a Viena nazi vencida e dividida entre americanos, ingleses, franceses e soviéticos. Passa-se logo no início da guerra fria, época das candongas. Trafica-se penicilina adulterada para ganhar dinheiro tenta-se sobreviver arranjar um lugar seguro, um emprego, os personagens estão claramente ultrapassados pela situação. Não percebem nada do que se passa.

The Third Man é um dos mais fascinantes objectos da história do cinema. Talvez por causa desse ranking, têm corrido muitos mexericos acerca dos bastidores do filme e dos seus protagonistas.

Orson Wells é ele ou não o verdadeiro autor do filme?

Questão sem interesse. Já imaginaram o filme sem o actor que foi o cineasta born in the USA mais europeu e genial de todos os cineastas? Orson Wells aparece no filme apenas duas vezes, mas são essas duas aparições que tornam o filme convincente naquela que é a sua questão central, a denúncia dos crimes cometidos em geral por toda a espécie de profiteurs e especuladores em tempo de crise e de miséria.

É o cinismo sorridente de Wells que dá corpo a essa denúncia. Adiante.

Na colecção cinéfila do KafeeHaus o que é interessante é a comparação dos dois cartazes acerca do Terceiro Homem. Primeira curiosidade: um cartaz é em alemão o outro em castelhano, nada de incomum. O interesse aumenta quando comparamos os dois. No cartaz espanhol, está tudo muito certinho, o nome do produtor, do realizador e dos quatro principais actores aparecem na devida ordem: Alexander Korda, Carol Reed, Orson Wells, Joseph Cotten, Alida Valli, Trevor Howard. Não me lembro, mas deve também figurar o nome de Anton Karas, o improvável músico cigano que apesar de não saber ler música compôs e interpretou a célebre música do filme.

Surpresa chocante: no cartaz vienense, o primeiro nome é o do ilustre desconhecido, pelo menos para mim ignorante, Paul Horbiger, seguido de vários outros nomes de actores que suponho fossem austríacos. No fim cá em baixo podemos descobrir os nomes do Orson Wells e das outras estrelas do filme.




Meu Deus como é que foram capazes de pôr a extraordinária – deveria arranjar um adjectivo mais à altura desta mulher e actriz extraordinária, é o termo - Alida Valli cá em baixo no fim da lista? Por ser italiana? Por ter seduzido um oficial austríaco no Senso de Visconti durante a guerra pela unificação italiana?

Será xenofobia ou serão traumas de identidade ferida pelas sinuosidades inflexíveis da história? Síndrome pós-traumática? Poderão imaginar o que seria um cartaz do Doutor Jivago em que, em vez do Omar Sharif aparecesse o Virgílio Teixeira, escudado no seu episódico papel de oficial tsarista confrontado com o “pacifismo” bolchevique?

Viena e Áustria são uma das construções mais estranhas e complexas da história e da cultura europeias. Áustria e Viena de Mozart, de Haydn, de Beethoven, de Schubert, de Klimmt, de Schonberg, de Webern. Quelle collection! A Viena anti-semita de Mahler, de Freud, de Zweig e Schnitzler. Quelles contradictions!

Bem-vindo KafeeHauss, bem-vinda Europa ! Bem-vindos, caros imigrantes, a Terra é a nossa pátria se é que esta palavra ainda tem algum sentido.





quinta-feira, 14 de maio de 2009

Bela Vista, blade runners



Bela Vista, Bela Vista! Espreita-se a vida urbana de Setúbal do alto do Castelo de S. Filipe. É uma vista panorâmica em cinemascope, mas lá do alto também se vislumbram pormenores.

O rio, o estuário, os ferry-boats verdes desmaiados, a cor não se percebe lá muito bem, talvez tenha a ver com aquela história um bocado forçada do desenvolvimento sustentável. Os grandes grupos de patrões, de empresários, Sonae, Espírito Santo, eu sei lá, descobriram essa fantasia politicamente correcta para se apoderarem, sob a protecção dos pins socráticos, da costa peninsular setubalense. Travestidos de ecologistas, fazem agora a apologia do verde desmaiado nos seus barcos com que transportam os turistas.

Pormenores, pormenores. Luísa Rosa de Aguiar, conhecida por LuísaTodi, a grande meio-soprana europeia setecencista, a “cantora de todas as centúrias” é a verdadeira padroeira de Setúbal. Não é só por isso que a cidade é nobre.

Na avenida que é o coração da cidade e que tem o nome da grande cantora, fica o mercado. Mercado do povo, claro, que ajuda contra o custo de vida. No seu bulício interior, nas pessoas que cruzamos, nos vendedores, nas fotografias dos heróis do Vitória, encontramos sinais da antiga tradição pescadora da Setúbal proletária e humanista.

Pormenores, pormenores. Bela Vista, bairro cercado pela polícia. Bairro sequestrado pela pobreza, D. Manuel Martins dixit. Em que é que ficamos? Um filme de polícias e ladrões, ou mais uma das intermináveis cenas de regime capitalista? Blade Runner?

Na cena final deste filme de Ridley Scott de 1982, Rutger Hauer o subversivo raplicant andróide, explorado e condenado a vida breve, fugido das fábricas extra-terrestres, salva a vida do polícia que o quer matar, o blade runner Harison Ford. Porque é que ele salva o polícia?

Hauer sabe que o seu tempo de vida vai terminar, foi programado para apenas quatro anos, tempo útil nas tais fábricas. É apenas mão-de-obra, mas aspira a ter vida, é um direito, não? Tal aspiração é subversiva, mas ele não aceita ser escravo: “viver no medo é ser escravo” diz na conversa final sobre o terraço à chuva com Ford.

Ford é apenas mais um polícia apanhado na engrenagem da equação do capitalismo, lucro, patrões, executantes, polícias, mão-de-obra, pobreza, Estado, prisão, violência. Será esta equação que torna o capitalismo humano?

“Vi coisas que ninguém acreditará, naves em fogo em Orion, raios C brilhando nas portas de Tanhauser. Todos estes momentos se vão perder como lágrimas na chuva.”
Choras, blade runner Ford? Chora, porque também tu és raplicant, andróide sem esperança.
Não chores Bela Vista. A tua hora há-de chegar.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

COINCIDÊNCIAS


A noite estava morna, era verão, não se ouviam grilos, o que era estranho. O bairro tinha muitos quintais, vivia ali gente com posses de classe média remediada, era sossegado. Mas não havia grilos a cantar. Après tout, qu’est-ce que ça peut faire?

- E, então, o concerto ?
- Qual concerto ? Ah ! sim o Haydn, estava a pensar noutra coisa…Sabes, gosto mais de ir ao cinema. Não prestei muita atenção.
- Era o concerto em dó maior, a violoncelista fazia lembrar a Jacqueline Dupré, como é que já não te lembras? O que é que isso tem a ver com cinema, são coisas diferentes. Até amanhã.

Enfiou a direito e a descer, era só calçada já um bocado puída por muitos sapatos e histórias antigas. Amanhã tinha que se levantar cedo, se calhar o melhor era ter ficado em casa feito parvo a olhar para a televisão, sempre descansava. A Mariana era uma gaja muito fechada lá no canto dela, comunicar como, como? O que é que se passava na cabeça dela? O que é que se passa na cabeça das pessoas? Amanhã, depois do trabalho, tinha que ir á piscina esbracejar fazer algum exercício. Estava a ficar velho que porra.

Não havia ninguém na rua só o barulho dos automóveis o costume, na cabeça ia ouvindo o terceiro andamento do concerto do Haydn. Apetecia-lhe ir viver para o Alentejo.

Foi à internet pesquisar sobre a Dupré. Sempre tinha achado um bocado estranho que ela tivesse um nome francês, a família dela era mesmo inglesa, a mãe era professora de piano, o pai era very typical. Primeira surpresa: o nome completo não era inteiramente francês: Jacqueline Mary Dupré, isso da Mary não sabia.

Dupré era uma força da natureza, mas foi a natureza que a tramou. Aos 28 anos, tudo acabou, esclerose múltipla, acabaram os concertos, longa agonia dos anos, quase quinze anos, sheet! Em 1987, o pobre corpo de Dupré extingue-se.

1987, isso não me diz nada? E esclerose múltipla?

A resposta foi rápida, Zeca Afonso, 1987, esclerose múltipla.

No silêncio relativo da noite, com os carros lá fora no seu estrondo, ficou a pensar por que é que haveria estas coincidências de maus destinos de entes amados, falta de imaginação, burrice dos deuses?

Interrogou a internet sobre as suas dúvidas metafísicas. As respostas foram enigmáticas. Ficou a saber que a carreira da Dupré começou a brilhar aos 11 anos quando ela ganhou o 1º prémio do concurso Suggia. O quê? Suggia, a Guilhermina Suggia do Porto e do Pablo Casals? Suggia, considerada o maior violoncelista vivo em mil novecentos e poucos?

Sim, confirmou a internet, foi ela quem instituiu em testamento, com o dinheiro da venda dos seus dois Stradivarius, aquele prémio com o seu nome.
Síntese do oráculo intercomunicacional: Suggia abriu o caminho a Dupré, Dupré continuou Suggia. A portuguesa acabou com o monopólio masculino do violoncelo, criou o prémio que lançou Dupré. Dupré valorizou a herança da portuguesa para além de todas as esperanças, elevando a arte de Haydn, Elgar, Dvorak e Schumann aos píncaros do impossível.

Zeca Afonso continuou os Menanos e os Bettencourts do fado de Coimbra mas principalmente fez subir a música aos everestes ainda mais altos da fraternidade.

Demasiado, eram demasiadas coincidências. Tinha que descansar. Amanhã provavelmente iria ao cinema talvez houvesse um filme que merecesse ser visto. Amanhã será outro dia disse a Vivien Leigh. E adormeceu pensando na Mariana.

terça-feira, 5 de maio de 2009

QUARENTENAS

No Nosferatu de Murnau, quando o grande barco termina a sua viagem no porto, as imagens finais do filme mostram o desfile em passo de corrida de ratos lestos e atrevidos que fazem a guarda de honra ao personagem de grandes orelhas, no seu desembarque. É o desenlace da viagem de todas as ameaças, o vampiro com os ratos, a chegada da peste. As epidemias sempre gostaram de viajar. Quem não gosta?
A mais terrível de todas as pestes e epidemias, a peste negra, terá começado o seu périplo na China, isto no séc. XIV, quando entre Ocidente e Oriente poucas linhas de comunicação existiam, não havia aviões, provavelmente só camelos, cavalos, guerreiros e a rota da seda. E no final do maléfico trajecto, o barco dos ratos e da peste chegou a bom porto, salvo seja, com Nosferatu feliz. E ela chegou ao Ocidente, a maldita bubónica, e por cá ficou durante 3 anos, entre 1347 e 1350.
Não havia anti-vírus, a desgraça tinha o caminho livre. Mas, no princípio do séc. XVI, burgueses esclarecidos e preocupados com a sua sobrevivência inventaram em Londres os bills of mortality, registos semanais dos óbitos. Quando a coisa observada subia demasiado, as famílias aisées punham-se ao fresco para as suas casas de campo, e assim escapavam à epidemia. Eram espertos, inventivos e a sua (deles) invenção conduziu mais tarde às quarentenas, com que se isolavam nos portos de destino os viajantes contaminados. Em Lisboa, à entrada do Tejo, era o Lazareto, ainda lá estão as ruínas, suponho.
No séc. XVIII, as quarentenas tiveram bastante sucesso e impediram que muitas ameaças nosferáticas se propagassem. No entanto, em Marselha em 1720, um controle médico ineficaz de um barco chegado da Síria, carregado com muita gente contagiada, provocou uma terrível mortandade, pelo menos metade dos 80.000 habitantes da cidade foram ceifados e, a partir dali, a peste viajou para norte. Foi a última grande epidemia de peste da Europa ocidental.
Depois, vieram outras epidemias talvez menos terríveis, até à gripe espanhola, que nos atingiu com violência. Balanço: entre 1918 e 1919, em Portugal, houve mais 135.000 óbitos (se quiserem saber mais, leiam o livro que vai ser publicado pelo Instituto de Ciências Sociais, Olhares sobre a pneumónica).
Em 1918, tal como em Marselha em 1720, a quarentena falhou, e os resultados dessa falha claro que foram catastróficos. Falhou, porquê?
Aconteceu tudo no final da guerra, as tropas estavam a ser desmobilizadas, elas queriam era regressar a casa, muitos soldados tinham apanhado um vírus de aves viajantes, pouco controle havia, só mais tarde é que se percebeu o que estava a acontecer, os sistemas sanitários eram rudimentares e a miséria não tinha mudado. As primeiras vítimas aconteceram em Espanha, logo, gripe espanhola, o que faz sentido. Creio que os espanhóis não se ofenderam, já bastava a desgraça.
Não havendo quarentena, a pneumónica viajou pelos continentes.
Viajará a porcina influenza, agora rebaptizada gripe A (A, de quê?) pela extraordinária Organização Mundial de Saúde?
Esta organização global tem exercido o seu poder em campanhas moralistas, tipo anti-tabagismo, anti-alcoolismo e vamos lá a ser saudáveis, senão…Na sexta-feira da semana passada, os seus principais responsáveis começaram de repente, quando ninguém estava à espera, a falar em tom solene de pandemia de uma nova gripe, a gripe porcina, de que ninguém tinha ouvido falar. Pânico, grau 3, grau 4, grau 5 e, sabe-se lá, grau 6, máximo de todas as ameaças. Histeria: 148 mortos no México, o que é que vai acontecer? Vai ser decretada uma quarentena ao México, aos Estados Unidos, à Califórnia? Niente.
O pessoal turístico continuou a ir para Cancun, se a epidemia é de porcos, lá não há perigo, é tudo muito higiénico.
O tráfico intercontinental não foi interrompido, a OMS foi avançando, foi recuando, afinal, a tal pandemia é melhor não falar nisso, se calhar, só lá para Outubro, que é mês da gripe espanhola e da asiática de 1957.
Quarentenas, pandemias, desgraças: e as subprimes? Se não nos livraram da epidemia das subprimes e do desemprego será que nos vão livrar da epidemia mexicana?
A burguesia e os burgueses, quando ainda não estavam comodamente instalados no poder, inventaram as quarentenas sanitárias, que evitaram muitos milhares de mortos. Honra lhes seja. Será que ainda poderemos confiar que vão ser capazes de controlar a maléfica influenza? E já agora de sacrificar a sua ganância de cada vez mais lucros? De inventar outro sistema económico e social, pós-capitalista?