PEDALAR É PRECISO!

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

GENO-SIDA



Li ontem no Público uma história que me pareceu interessante, às vezes acontece. Mas será a história mesmo interessante? Não é propriamente uma história que possa servir de exemplo, mas ela é elucidativa quanto aos tempos que vão correndo, se bem que se calhar sempre foi assim. Não nos armemos em juízes porque, para juízes, já nos chegam os cromos que mandam na nossa “justiça”. Mas não é uma história banal, donc primeira razão para ela me parecer interessante.

Conta-se em poucas palavras o enredo.

Uma jovem inglesa, estudante de doutoramento, decide ir viver para Londres, é ambiciosa, claro, isso não tem mal nenhum, antes pelo contrário. Mas, ao fim de algum tempo, descobre que as coisas afinal não são bem como esperava, fica sem dinheiro, não pode pagar a renda da casa, and so on. Dilema óbvio, que fazer?

Arranjar um emprego, mas isso roubaria demasiado tempo ao seu doutoramento. Encontra então uma inesperada e improvável fonte de rendimento, why not, call girl.

Esta nova actividade, além de se revelar muito rentável, alimentará a sua inspiração em divagações literárias num blogue a que dá o cinéfilo nome de Belle de Jour, provavelmente a Catherine Deneuve terá ficado sensibilizada e o Luis Buñuel, se ainda fosse vivo o que infelizmente não é o caso, ainda mais, porque ele perdia-se mesmo por este tipo de personagens.


O blogue teve imediatamente muito sucesso, não se conhecia a identidade da(o) autora(o), agora sabe-se, a senhora saiu do armário, é uma conceituada investigadora de uma universidade inglesa. End of the history na parte que me interessa.

Porque a parte mais exemplar que me sugere este caso de uma inglesa de sucesso, liberal, sexy e pragmática são outros comércios sexuais que se vão praticando por esse mundo fora, comércios que têm a ver com miséria, morte e genocídio.

O comércio de mães de família africanas, sozinhas porque o marido provavelmente emigrou à procura de emprego, mulheres cujo último recurso para dar de comer aos filhos é ganhar alguns cobres em comércio sexual sem qualquer protecção.

Pode acontecer, é a probabilidade mais certa, que um dos seus parceiros seja alguém de passagem, um viajante que vai parando aqui e acolá, se vai infectando e, enquanto pode, vai continuando na sua transumância letal.


Um estudo feito há uns anos junto de motoristas de camiões de longo curso que faziam o percurso entre o Uganda e Moçambique mostrou que as taxas de seroprevalência destes viajantes por obrigação podia chegar aos 80%!


Bombas rolantes, camiões-caixão, quem poderá travar este vaivém?


Dados das Nações Unidas, desactualizados: em 2003, existiam em todo o mundo 37,8 milhões de infectados pelo vírus da sida, dos quais 25 milhões viviam na África subsaariana. Em 2006, 4,3 milhões de pessoas ficaram infectadas, 65% das quais eram africanas, houve 2 milhões de mortos ao sul do Saara, é claro que se trata de um genocídio. Por que não se fala dele?


Perdão, o papa falou em Março deste ano antes de iniciar a sua romaria a África, disse que isso do preservativo não resolvia o problema, antes pelo contrário! Adelante.


Também a Winnie Mandela, cuja elevada estatura moral é, como se sabe, universalmente reconhecida, vai no mesmo sentido: “enquanto mães da África do Sul, achamos que o remédio é a abstinência.”


Les grands esprits se rencontrent. O saudoso presidente Bush filho também defendia a abstinência e a fidelidade para combater o flagelo e, coerente com o seu ponto de vista, arregimentou um bando de fanáticos religiosos que foram pregar a boa nova para África. Comércio vergonhoso este, incomparavelmente mais vergonhoso que qualquer comércio sexual: os generosos dólares do plano PEPFAR (não sei o que é que isso quer dizer) eram recusados a quem andasse a defender preservativo. No safe sex, no sex at all!

Nos países chamados desenvolvidos, a sida evoluiu para doença crónica, tratável, graças às terapêuticas de combinação de medicamentos retrovirais.


Em África, não há prevenção, não há retrovirais gratuitos, a sida continua a ser uma doença sócio-económica que alastra, se alimenta da ignorância, da passividade criminosa dos governos, se alimenta de muitas misérias, da miséria que conduz muitas mulheres indefesas à prostituição e a comportamentos de risco, ao negócio sexual que faz ao mesmo tempo vítimas e carrascos neste genocídio silencioso de que não se fala.


No news, good news é um aforisma que não se aplica aqui. A sida já não é notícia, isso é uma péssima notícia.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

SUBORNOS



“Não conhecia em toda a cidade uma pessoa honesta. O meu pai [arquitecto] aceitava subornos e estava convencido de que lhos davam por respeito às suas qualidades espirituais; os alunos do liceu, para passarem de ano, iam morar nas casas dos professores que lhes cobravam por isso quantias enormes; a mulher do comissário militar, por alturas do recrutamento, levava dinheiro aos recrutas, aceitava mesmo convites para almoçar e até, uma ocasião, na igreja não conseguia erguer-se dos joelhos porque estava bêbada; durante o recrutamento, os médicos também aceitavam subornos, e o delegado de saúde e o veterinário impuseram tributo aos talhos e restaurantes; na escola distrital vendiam-se diplomas que concediam privilégios de terceira categoria; os bispos auxiliares sacavam dinheiro dos clérigos subordinados e estes dos sacristães; nas administrações municipal, urbana, médica, etc. gritavam às costas de cada peticionário: ‘Tem de agradecer!’, e o requerente voltava atrás para desembolsar trinta ou quarenta copeques de gratificação. E os que não recebiam subornos, como os funcionários dos tribunais, por exemplo, eram arrogantes, em vez da mão, cumprimentavam com dois dedos, destacavam-se pelas suas opiniões frias e limitadas, jogavam muito às cartas, bebiam muito, casavam-se com herdeiras ricas, e exerciam, sem sombra de dúvida, uma influência nociva e depravadora na sociedade. Apenas as meninas davam a sensação de pureza moral; a maioria delas tinha ambições sublimes, almas honestas e puras; mas essas não conheciam a vida e acreditavam que os subornos eram pagos por respeito das qualidades espirituais dos subornados e, depois de casadas, envelheciam rapidamente, decaíam e afogavam-se com desespero no lodo de uma existência vulgar, pequeno-burguesa.”


Anton Tchékhov, “A minha vida. História contada por um provinciano”, in:

Contos de Tchécov, volume V, Tradução (do russo) de Nina Guerra e Filipe Guerra, Maio de 2006, Relógio d’Água Editores, Col. Clássicos, Lisboa

MUROS



Em 1938, na Kristallnacht de 9 de Novembro, começou a solução final nazi de extermínio dos judeus, o holocausto que custou a vida a seis milhões de homens, mulheres e crianças.


Cinquenta e um anos depois, dia por dia, ocorreu também na Alemanha outro acontecimento marcante da história do século XX, a queda do muro soviético de Berlim. Rompeu-se nesse dia a cortina de ferro que durante anos protegeu o paraíso comunista. Mas, ao contrário de Adão e Eva, os berlinenses não foram expulsos do paraíso, eles saíram de livre vontade, arrombaram com o muro com um murro de liberdade.


O que tem a ver a Kristallnacht nazi com o muro de Berlim?





Tem a ver com os caminhos da humanidade no século passado, não os caminhos da grande Humanidade, o que é uma fantasia decalcada da ideia muito alemã de Weltanschauung, ideia de totalidade, de sistema global, visão global do mundo, soluções globais. Fantasia que exclui por razões óbvias a ideia de liberdade individual, a liberdade dos humanos.


A humanidade dos humanos é outra coisa, somos todos seres diferentes, altos, baixos, mulheres, homens, judeus, crianças, asiáticos, africanos, pobres, ricos, remediados, inteligentes, menos dotados. Seres humanos com direitos, seres livres, que no passado lutaram e continuam a precisar de lutar por esses direitos.


Apesar de todas as retóricas sobre a Humanidade e os direitos humanos, o séc.XX não foi o século da liberdade, houve genocídios, chacinas, colonialismos, terríveis guerras e muitas outras infâmias e crimes.


Mas pode acontecer, sabe-se lá, que em 9 de Novembro de 1989 tenha começado um século diferente. A esperança é a última coisa a morrer.




A muralha da China começou a ser erguida cerca de 200 anos antes de Cristo, tinha uma função defensiva, mas, apesar da grandeza e da extensão das suas fortificações, que chegaram a atingir cerca de sete mil quilómetros no século XV, ela não impediu as repetidas incursões de mongóis e outros invasores. No séc. XVI, chegou-se à conclusão que não servia para nada, foi abandonada, ficou o património turístico.


Depois da queda do muro comunista, nasceram novos muros políticos e arquitectónicos. O que nos ensina a queda do muro de Berlim e o abandono da muralha da China é que esses novos muros, que ainda subsistem, serão certamente derrubados e esse derrube poderá não levar muito tempo a acontecer. No fim da história, tal como em Berlim, entrarão em cena os negociantes de recordações e de pedras da opressão.




O chamado Muro da Cisjordânia não serve apenas para separar Israel da Cisjordânia. 80% do muro mandado construir em 2002 por Sharon situa-se em território fora das fronteiras israelitas e protege colonatos construídos em terra palestiniana. Quando estiver terminada a construção, graças aos seus mais de 700 quilómetros, cerca de 10% da Cisjordânia ficará a pertencer a Israel.


Noite de Cristal e muro de Berlim têm, assim, outra conexão terrível. É que a incoerência humana em relação aos direitos fundamentais pode ultrapassar todos os limites imagináveis. Quem no seu perfeito juízo pode justificar que os judeus, vítimas do holocausto nazi, possam agora sequestrar 450.000 palestinianos numa prisão cercada por uma cortina de betão?


Gigantesco ghetto que encerra um mundo pior do que era o mundo soviético: proibidos de viajar, impedidos de trabalhar, o que resta aos palestinianos cercados? Deitar bombas?


Talvez porque tenham a consciência pesada, os americanos pouca importância têm dado ao significado, às consequências desta arquitectura totalitária israelita, que em grande parte é financiada por dólares do tio Sam.


É que eles próprios, americanos, fabricaram também um muro, mas mais ambicioso de quase mil quilómetros, sofisticado, com várias barreiras, iluminação eléctrica de alta intensidade, sensores, detectores pessoais, helicópteros armados, tudo em grande: 2.400 milhões de dólares para a construção, mais 6.500 milhões para a manutenção durante os próximos 20 anos, talvez o custo de várias muralhas da China.


Mas os custos que deveriam contar são outros, os custos em vidas humanas: cerca de 6 mil pessoas já morreram ao tentar passar a fronteira, contas que pecam talvez por defeito. Contas feitas desde 1994, ano em que o por muitos apreciado democrata presidente Bill Clinton criou o dito muro.



Ó Clinton, porque é que mandaste construir o muro? Para impedir a entrada de indesejáveis imigrantes mexicanos, responderá ele.


O que é curioso, se assim se pode dizer, é que uma grande parte do território sob vigilância de mais este muro da vergonha era pertença há muito tempo do México, o que confirma, se isso fosse necessário, que o que prevalece é sempre a lei do mais forte.


Mas as leis do futuro são incertas e podem ser simpaticamente irónicas. Antecipemos que talvez um dia aquela sofisticada fortaleza possa servir para proteger o México da entrada de indesejáveis imigrantes americanos ilegais.


Muitos políticos, mesmo os democratas, gostam de construir muros para sequestrar, para reprimir, para castigar. Mas há muitas maneiras de o fazer. No tempo do Salazar, muitos condenados pelos tribunais políticos eram desterrados para sítios com mar à volta, Timor, Açores, por exemplo.


Em Itália, Mussolini fazia o mesmo, era o chamado confino, os confinati.


Na Birmânia, a ditadura militar confinou Aung San Suu Kyi num sítio com água à volta. Separou-a do marido, separou-a dos filhos. Uma mulher que resiste pela liberdade, pela humanidade. Uma mulher que a humanidade que temos em nós deve amar.



No nosso quotidiano, quando nos levantamos e vamos pela rua, quando por acaso olhamos o céu, a luz do sol, a água que corre no Tejo e os barcos que nela se passeiam, devíamo-nos dar conta de que estamos rodeados de maravilhas que dão sentido à nossa humanidade. A verdade é que não nos extasiamos, temos pressa, não reparamos nos muros que não nos deixam ver o que há à nossa volta.

Muros que não são apenas os condóminos fechados, os lugares reservados, os sinais distintivos de classe, com os sem-abrigo lá fora, sem tecto, sem muros, sem paredes, nem janelas.


São também aqueles muros que tornam as pessoas incomunicáveis, distantes, indiferentes.


As pessoas que moram no mesmo prédio, que se cruzam todos os dias nos mesmos sítios e que não dizem bom dia, olá como está.


As pessoas que se olham de lado, que comentam entre dentes o decote mais ousado, o marido mais jeitoso, as calças mais apertadas. Talvez inveja, ou mais provavelmente muros que cada um ergue dentro de si para não ver a humanidade que está ali perto.





Robinson Crusoe e Sexta-Feira, lembram-se da história de Daniel Defoe?


É uma história de amor pela humanidade, porque nós humanos não podemos viver sozinhos, precisamos de gente à nossa volta, precisamos de comunicar com a diferença.


Estamos todos numa espécie de arca de Noé e só juntos nos podemos salvar do naufrágio de valores e derrubar os muros e fortalezas que ameaçam as nossas liberdades e a nossa humanidade.


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O IDIOTA E A PIETÀ

Estava a começar a ver o Rashomon do Kurosava, a cena inicial do templo em ruínas, a bendita chuvada que cria a trama do filme, com o monge budista e o lenhador que começam a contar a um outro tipo, que não se sabe o que é que faz, a história do samurai que apareceu morto na floresta.
É um filme sobre o jogo da verdade, a verdade não existe, cada um inventa a que lhe convém, mas a esperança na humanidade renasce sempre, é o que diz, no fim do filme, a cena do lenhador com o bebé nos braços, é um pouco o sentido do filme.

Neste filme, do que gostava mais era da chuva forte nas ruínas que ritma a conversa daqueles três. Começava a ficar embalado para ver a história até ao fim, mas de repente tocaram à porta.

Abrir a porta a alguém tornou-se raro, mesmo improvável. As pessoas já não se visitam, a não ser que sejam convidadas, telefonam-se, encontram-se na net, emailam-se, combinam encontrar-se fora, encontram-se nos intervalos do trabalho quando vão comer ou beber qualquer coisa à pressa.
O elevador há muito que estava avariado, isso já fazia parte do décor, alguém que se dava ao trabalho de subir as escadas até ao sexto andar para tocar à campainha, quem seria?

Ficou mudo, hirto, sem saber o que dizer. Era a vizinha do terceiro andar, há muito que não a via.

Quando às vezes se cruzava com ela na escada, tentava imaginar que idade teria, talvez mais de setenta, mas a verdade é que não sabia avaliar para além duma certa idade. Nela, tudo era extraordinário, não apenas porque continuava a ser uma mulher muito bonita. Tinha estilo, olhar desafiante mas amigável, não era agressiva antes segura.

Tinha uma espécie de aura, de luz, diferente daquelas fosforescências que se representam à volta da cabeça dos santos. A aura dela era a da Maria Callas quando cantava vestida de Norma. Era isso.

Nos momentos em que se cruzavam, sentia a necessidade de meter conversa, de interpelá-la. Mas ficava intimidado, era como se a mulher não pertencesse ali. Meter conversa como? Não era uma cena de discoteca. Mas a sua curiosidade ia aumentando. Ela irradiava um porte inatingível, um esboço de sorriso de Gioconda. Provavelmente somava séculos de linhagem a aprender a estar, a andar, como brilhar no mundo, em sociedade, a arte de seduzir.

E agora este surpreendente objecto do seu fascínio e curiosidade estava ali à porta, mas instintivamente sentiu que ela tinha mudado, como se tivesse envelhecido de repente.

- Desculpe incomodá-lo, a minha nora telefonou-me, o meu filho está muito doente, tenho que respirar com alguém ao meu lado. Talvez possamos conversar, não sei o que fazer…Peço desculpa.
Atrapalhado, convidou-a a entrar, ela sentou-se no sofá, foi-lhe buscar um copo de água.

- É curioso que esteja a ver um filme do Kurosawa, de que gosto muito. Sempre fui cinéfila. Quando vivia em Paris, passava o tempo na cinemateca de Chaillot, acho que vi os filmes todos, mas o meu preferido do Kurosawa é um filme de que nunca se fala, é O Idiota que foi feito um ano depois do Rashomon, no princípio dos anos 50. E os actores dos dois filmes são praticamente os mesmos, o que faz de samurai é o actor que representa o papel do príncipe Mychkine.

- Nunca tinha ouvido falar desse filme do Kurosawa, parece-me que o Gérard Philippe entrou numa versão francesa do livro do Dostoiewsky, mas nunca a vi…

- Sim, o Gérard Philippe, os franceses…Sabe, as histórias do Dostoiewsky pertencem a outro planeta, o Kurosawa percebeu isso muito bem, é um filme japonês, não é russo, mas provavelmente seria preciso alguém como o Tarkowsky para fazer um filme russo d’ O Idiota… Isto não terá a ver com nacionalidades, serão talvez afinidades escondidas que se transmitem no tempo apenas entre pessoas que vêm do mesmo planeta… Desculpe ter interrompido o seu filme e estar para aqui a filosofar.

- Conheço mal os escritores russos, li uma vez uma coisa do Turgueniev, já não me lembro do título…

- O Dostoiewsky detestava o Turgueniev, era demasiado parisiense para a sua alma russa, eram incompatíveis. O Dostoiewsky era muito fascinado pela figura do Cristo e há quem diga que o príncipe Mychkine reproduziria a imagem do Cristo, um Messias de quem todos estavam à espera de salvação, amor ou dinheiro…
Mas, Mychkyne não tinha pai, não tinha mãe e, no final, todos os que o cortejavam ou o amavam cortam com ele, e o príncipe volta para a sua solidão… para a sua loucura…para a sua tristeza… Choca-me a tristeza do príncipe idiota que não era deste mundo… É uma coincidência estranha ter vindo bater à sua porta e estarmos aqui a falar do Dostoiewsky e dos filmes do Kurosawa…

Gostava de poder interrompê-la, oferecer-lhe qualquer coisa para beber, estava quase em pânico, queria que ela sorrisse como quando se cruzavam nas escadas, mas sentiu que esse tempo tinha acabado.

- Sabe, a tristeza pode ser uma alegre companheira, enquanto nos acompanha vamo-nos olhando por dentro, vamo-nos reconhecendo na solidão dos dias, ficamos mais fortes...Pode não ser dramático, podem ser apenas estados de alma, percepções sem espaço, deambulando sozinhas na nossa mente…Mas com o meu filho lá longe, não consigo deambular sozinha, por isso, vim bater à sua porta…O meu filho que talvez esteja em agonia, foi para a Argentina há muitos anos, passei tanto tempo sem o ver…A minha tristeza é sobre qual será a imagem que ele guardou da sua mãe. Sinto que não terei resposta…Sabe, a imagem que guardei da minha mãe é muito forte, continua muito presente, ela cantava arrumando a casa, ia passando a mão pelos meus cabelos, sempre de sorriso aberto e alegre, enérgico e doce… ela tinha dezoito anos, é essa a minha imagem de uma mãe. A imagem que me alimentou até a esta tristeza pelo meu filho.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

OUTONO QUENTE, OUTONO FEMININO?



Depois das tristezas eleitorais, temos o privilégio de um Outono quente. Oferta enigmática e quiçá inquietante.
Como interpretar este aquecimento climático, serão os trinta graus um mau prenúncio? Será que a nomenklatura socialista vai continuar a massacrar-nos, ou será que o "jovem" Sócrates vai finalmente descobrir que nem tudo o que luz é ouro?
Anuncia-se menos pobreza, mais alegria, mais justiça, mais respeito, menos arrogância?

No meio desta perplexidade outonal, a televisão, por uma vez, contribuiu para me dar algum alento. É que me foi dado ver algumas das novas deputadas que se vão sentar nos cadeirões de S. Bento.
Num dia outonal como os de antigamente, isto não teria qualquer espécie de interesse.
Mas de repente no dia de hoje surge qualquer coisa nova e interessante, passe a redundância, reais novidades e até alguns sinais de esperança. Ou apenas ilusão climática?


Não fixei os nomes de todas as novéis de S. Bento apresentadas pela TV.
A única personagem que consegui identificar é uma jovem mulher de cinema relativamente bem conhecida e que, aliás, mora em Paris, tem lá a sua família. Primeira novidade inquestionável, primeiro sinal de esperança: estamos mesmo a ficar cosmopolitas, o parlamento vai ter uma deputada que mora em Paris.
Assinale-se, não se trata de uma eurodeputada que durante a semana trabalha em Bruxelas e ao fim de semana vem ver a família que mora em Lisboa e arredores, ou seja, em Portugal. O caso é muito mais interessante, vislumbro aqui uma espécie de entrismo francófono de estilo trotzsquista no parlamentarismo português, soyez la bienvenue, Madame!

Das artes, vem também uma das novas deputadas do BE, tem um ar muito decidido, gostei, não fixei o nome, peço desculpa, fica para a próxima, haverá certamente oportunidade para isso.

Outras duas novas deputadas são particularmente bem vindas, são mais jovens, são especialmente bem apessoadas, dá gosto vê-las, elles ont l’air du temps, estou completamente farto daquelas chipalas manhosas que me entram pela casa dentro a propósito dos conciliábulos parlamentares. Alegria, alegria, venha a nova geração, venha gente com bom aspecto! Novas ideias, novas políticas?


Quatro novas deputadas, uma eleita pelo PS, outras pelo PSD, pelo PC e pelo Bloco, o espectro partidário, quoi! Estamos no bom caminho.
Mas, dirão, falta o CDS. Não é verdade. É que a TV também mostrou uma nova deputada, a Assunção Cristas, mas o contexto dessa apresentação foi outro, de significado mais forte.
Reparem, ela apareceu ao lado direito do Paulo Portas na cerimónia de negociações em S. Bento com o Sócrates por causa do novo governo.
Como interpretar o seu lugar nessa liturgia televisiva? Não é ousado depreender-se que ela é apresentada como o número dois do CDS. Significado óbvio: a mulher vai longe, já extravasou o grupo das jovens deputadas, vai lá mais à frente.

Mas o dia televisivo foi mesmo feminino, um dia memorável, os jornalistas às vezes conseguem acertar. É que fiquei também a conhecer duas das vinte e duas presidentes de câmara eleitas no domingo e gostei. Gostei do ar delas, gostei da mensagem subliminar, gostei que tivessem sido eleitas no mesmo dia em que a Fátima Felgueiras foi posta sobre patins.
Não me lembro que partidos as elegeram, mas no fundo isso vai sendo cada vez menos importante. Sincretismo político que, bem vistas as coisas, que sejam mais homens ou que sejam menos mulheres ou vice-versa, não deixa de me irritar.

É que estamos numa espécie de guerra social, a coisa está preta e as clivagens não passam entre homens dum lado e mulheres do outro. Qualquer que seja o sexo político nada é pacífico, podemos ser mais civilizados, isso é bom, mas cada um e cada uma têm que lutar na sua trincheira.

E provavelmente nessa guerra são as mulheres quem tem mais a ganhar.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O POVO PARECE CONTENTE



Não podemos escapar à política, ela toma conta de nós, por muito que nos esforcemos parece que não há nada a fazer. Mas imaginemos outra alternativa: poderemos nós tomar conta da política?

A verdade é que a política está cada vez mais rasteira e despudorada, os ventos não correm de feição a activismos contra a corrente, a contestações. A margem de manobra é, por isso, muito estreita.

Durante quatro anos e meio tivemos a arrogância e a ambição desmedida do jovem Sócrates parvenu, tivemos a cartilha neo-tecnocrata e neo-liberal versão socialista. A cartilha do deficit das contas públicas, do deficit da Segurança Social, do código do trabalho, da ministra Rodrigues, do ministro Pinho, do ministro Jamais, do grande inquisidor SS e tutti quanti. A cartilha do código que odeia direitos, que adora flexibilidade, que adora a disponibilidade laboral, a obediência e a submissão de quem precisa de trabalhar.
A cartilha da reforma da administração pública e da disponibilidade dos funcionários públicos para o caixote dos desperdícios, dos milhões aos bancos e aos poderosos, a cartilha dos contentores de Alcântara. A cartilha de mais de seiscentos mil desempregados e de mais de dois milhões de pobres.

Durante quatro anos e meio foi a obsessão pelo deficit, a estagnação da economia, mais desemprego e pobreza. Mais precariedade no emprego, mais descriminações sociais, mais desigualdade, mais injustiça, mais corrupção. Menos educação, menos direitos.

Mas o povo parece estar contente, vai votar e o Sócrates, é o que diz a TV, vai ficar à frente. Qu’est-ce qu’on peut faire, il n’y a rien à faire (é uma canção francesa, tanto quanto me lembro).

Na campanha que nos deu a TV, as grandes questões foram o TGV e as escutas ao Cavaco. Falam do Salazar, escutam-se uns aos outros, espiam-se, odeiam-se. E o país, os pobres, os desempregados, os jovens sem futuro, os mais velhos a passar fome, alguém se preocupa?



Temos que aturar isto, parece a corte do D. Carlos. Caminhamos para um regicídio? Não é provável, tout le monde il est beau, tout le monde il est gentil.

Será que fazer política tem que ser falar do TGV e do Cavaco e seu assessor? Onde é que estão as diferenças, as fronteiras entre partidos, entre correntes de pensamento e propostas?
Discute-se política na campanha eleitoral? Não se discute e isso provavelmente deve-se ao facto de antes da campanha eleitoral, também não se discutir nada.
Onde estão os valores, a solidariedade, os ideais políticos? Onde está a contestação, onde está a malta nova, cada vez com menos futuro, cada vez mais precária, cada vez mais calada? É assustador e quem ganha é este Sócrates, os que estiveram antes e os que virão a seguir.

Campanha eleitoral, ausência de questões, questões sem resposta. Porque o que interessa são apenas os interesses. Não apenas os interesses dos banqueiros, dos grandes capitalistas. O que faz mover tudo, a engrenagem dos partidos que mandam na política é o pessoal à procura de bons tachos, o pessoal que tem o cartão do partido no momento certo. É essa a engrenagem.

Os que não têm nada a ver com isso são apanhados sem saber bem como pela política, sofrem as consequências dos desmandos, das injustiças, são apanhados pelas formigas partidárias que trabalham denodadas para amealhar vantagens. Tudo se passa num admirável mundo, bem ordenado, num admirável mundo que não tem nada de novo, aliás, está a apodrecer.

Tomar conta da política? Revoltem-se, organizem-se, falem com os vizinhos, com os colegas, discutam, mas não chateiem em casa, apaguem a TV.

sábado, 12 de setembro de 2009

11 DE SETEMBRO DE 1973

As televisões não esquecem o 11 de Setembro de 2001 e é bom que ninguém esqueça o horror desse dia. Mas um 11.09 pode esconder um outro.





Em 1973, o 11 de Setembro, não foi contra Nova Iorque, não foi contra o Pentágono. Nesse dia, os maus não foram os terroristas da Al Kaeda. Richard Nixon, CIA, remember? Nesse dia, as vítimas não foram só pessoas, foi também um país inteiro, foi a democracia chilena, foi Salvador Allende, foi Victor Jara.


Passados 36 anos, essas vítimas continuam a comover-me, lembro-me sempre delas neste dia. E lembro-me, associo muitas histórias passadas e presentes.


Nos anos 70, a história das intervenções para instalar ditaduras favoráveis aos interesses americanos já era uma longa história, a contabilidade é difícil de fazer.


Em 1954, por exemplo, a CIA, que existia ainda há pouco tempo, estreou-se em grande, organizando, comandando e fornecendo os meios militares necessários à invasão armada da Guatemala. O governo democrático e reformista de Arbenz Guzmán, a democracia guatemalteca acabaram aí. Iniciou-se então a longa dinastia de ditadores criminosos e corruptos, responsáveis pelo genocídio de oitenta mil, talvez mais, pessoas principalmente de etnia índia. God save America.

Mais exemplos da folha de serviços da CIA?
1964, golpe de Estado contra João Goulart, no Brasil.
1965, invasão da República Dominicana.
1971, golpe de Estado contra o presidente Torres na Bolívia.
1973, golpe de estado contra o presidente Allende.





A intervenção americana no Chile de Allende foi mais sofisticada, teve muitos cúmplices, muitos apoios, tudo orquestrado pela CIA, com a preciosa colaboração da multinacional ITT.




Quando Allende subiu ao poder em 4 de Novembro de 1970, já estava tudo preparado, o plano americano era simples. Para o destituir, tinha que se atacar a economia chilena, e provocar desordens sociais. Para concluir, o golpe militar do costume.



Infelizmente, tudo correu como previsto, nestas coisas os maus têm sempre razão. O governo Nixon montou um cerco à economia, conseguiu sufocá-la, a CIA encarregou-se de organizar e financiar os grupos sociais anti-Allende, empenhados em acções de sabotagem e de agitação social.

A situação económica agravou-se dramaticamente, a inflação passou de 22,1% em 1971 para 163,4% em 1972 e 381,1% em 1973. O crescimento do PIB chileno passou de 9% positivos em 1971 para 4,2% negativos em 1973.


O golpe militar começou na cidade portuária de Valparaíso, com tropas navais chilenas a avançarem para Santiago. Mas estas tropas tinham as costas quentes, enquanto avançavam, havia navios de guerra americanos preparados para invadir o Chile, caso o golpe falhasse.


Mas o golpe resultou, Allende foi assassinado no Palácio de la Moneda. Terminado o golpe, o general Pinochet apresentou-se para receber a guia de marcha. Encheram-se os estádios, foi um massacre nojento. A voz sublime de Victor Jara calou-se, choraram os democratas e anti-fascistas de todo o mundo.




A América foi igual a si própria, como sempre quando ganha. Manteve-se serena, sem estados de espírito, com o sentimento do dever cumprido, os valores americanos, sabe-se lá o que isso é. A América não conseguiu impedir a vitória dos comunistas vietcongs, vingou-se em Allende porque era marxista, parece que era esse o pretexto.


Em Agosto de 1974 Nixon é despejado pelo impeachment do Watergate e Gerald Ford ocupa o seu lugar.


Três anos antes, Nixon tinha suspendido a convertibilidade do dólar em ouro, enterrando o sistema de Bretton Woods e pondo a rolar nos carris o “novo capitalismo” assente na mundialização neo-liberal.


Logicamente, Gerald Ford despachou para o Chile o grupo de economistas loucos ultra-liberais, conhecido pelo petit nom de Chicago boys e chefiado por Milton Friedman. A América no seu melhor, à conquista do mundo.

A epopeia neo-liberal, cujos brilhantes resultados foram testemunhados o ano passado por toda a gente e, em particular, pelo sr. Alan Greenspan, patrão da reserva federal americana, iniciou a sua conquista do mundo no Chile, onde em Março de 1975 Friedman se encontrou com o ditador Pinochet.

Este encontro foi um sucesso, o Pinochet concordou (será que podia não concordar?) com a terapia de choque prescrita pelo chefe dos Chicago boys: privatização das empresas do sector público, supressão das barreiras alfandegárias, liberalização dos preços, incluindo de bens essenciais, redução do orçamento do Estado, despedimento de milhares de funcionários, autorização aos investidores estrangeiros para repatriarem a totalidade dos seus lucros, flexibilidade do emprego, privatização do sistema de saúde e do sistema de reformas, etc., etc.

O trivial do neo-liberalismo com que nos bombardeiam todos os dias os distintos comentadores, banqueiros e grandes empresários da nossa praça. Só que nessa época tudo isso era o começo e o Chile foi a cobaia escolhida.

Os resultados da terapia foram brilhantes. Durante o primeiro ano da sua aplicação, a economia chilena recuou 15% e a taxa de desemprego passou de 3% quando Allende era presidente, para 20%. Após 15 anos de funcionamento do laboratório neo-liberal, 45% dos chilenos viviam abaixo do limiar da pobreza.

Cruel ironia, em recompensa pelos brilhantes serviços prestados à Humanidade em geral e ao Chile e à América Latina em particular, em 1976 o sr. Friedman foi coroado com o prémio Nobel da Economia!

Coincidência por coincidência, data por data, o governo americano tinha a obrigação de nesta triste efeméride fazer um rapprochement entre Nova Iorque e Santiago do Chile. E a obrigação de tirar algumas lições.

O mundo precisa disso, precisa de saber quando é que os EUA fazem a sua mea culpa pelos crimes que cometeram quando se apresentavam como os defensores do mundo livre contra a ameaça comunista, pelos crimes que continuam a cometer em nome da democracia e contra o terrorismo.

O mundo precisa que os EUA tenham a coragem de retirar a máscara de superioridade moral com que continuam a apresentar-se ao mundo, enquanto os seus aviões continuam a massacrar civis inocentes no Afeganistão.

O mundo precisa de paz, de justiça e de prosperidade para todos. Está farto de políticos e de generais sempre prontos a inventar mais uma guerra.





sexta-feira, 28 de agosto de 2009

TERRAS DO DEMO




As férias são um bom momento para viajar. Mas pode-se viajar sem estar em férias. Provavelmente a melhor maneira de viajar é ler um bom livro no calor íntimo do inverno com o frio e o vento a soprarem lá fora.



Mas as férias têm a seu a favor a disponibilidade, vai-se andando, encontrando pessoas, coisas novas e até recordações. Viajar, estar em férias pode ser bom para se encontrar os outros, reconhecer, inventar novos lugares, sabermos em que mundo vivemos.


É que o mundo em que vivemos não é de hoje, tem muitos anos por detrás, sejamos humildes, procuremos os sinais do que vem daqueles tempos. Nós pertencemos a um mundo muito velho, ou seja, antigo, cheio de lições, de caras, de rostos, de gestos, de personagens. Finito l’introito, ite missa est.


Fui às Terras do Demo. Mas que diabo é que é isso das terras do demo? Aquilino Ribeiro, sabem quem é?


Não vou falar do Aquilino Ribeiro, claro que sabem quem é.


Aquilino era o inimigo de estimação do Salazar. Não admira porquê. Ambos tinham a ver com a Igreja. Pudera! Nesses tempos, havia alguma coisa para além da Santíssima Igreja Católica Apostólica Romana?


Aquilino era filho de padre, andou pelo seminário, o Salazar não era filho de padre mas consagrou-se à Igreja, era o que restava aos jovens desse tempo. Pobre Salazar, nunca foi muito além de Santa Comba, foi até Lisboa, passando por Coimbra. Lá conheceu o seu dilecto amigo futuro cardeal Cerejeira, moraram no Palácio do Grilo e depois fundaram o Centro Académico da Democracia Cristã, CADC.


Mas voltemos ao Aquilino. Salazar odiava-o, porque eles eram muito parecidos e, ao mesmo tempo, completamente desiguais. Ambos eram do distrito de Viseu, o Cavaquistão como diríamos hoje, o Salazar era de Santa Comba Dão, quem não sabe isso, o Aquilino era do Carregal da Tabosa, concelho de Sernancelhe.



O Salazar era reaccionário e beato, Aquilino tornou-se anarquista, deitava bombas, era anti-clerical. As voltas que o mundo dá.


Porquê toda esta história de verão?


É porque nos meus encontros de Verão ela me lembra muitas histórias antigas mas actuais.


Estive na terra do Aquilino, vi coisas novas, interessantes e lembrei-me de coisas passadas.


Lembrei-me do meu amigo Dr. Amadeu Baptista Ferro, veterinário, algarvio de Tavira que, por idealismo, decidiu transplantar-se para o cimo do distrito de Viseu, lá onde morava toda aquela gente muito pobre, os agricultores que pouco ganhavam para dar sustento á família. Ele resolveu ir para lá ajudá-los.




Um homem de estilo, aristocrata do espírito, democrata no trato com todos, sobretudo com os mais pobres.



Um espírito inquieto que a certa altura decidiu, isto nos anos 60, que era preciso homenagear o Aquilino, homenagear o seu génio, o seu testemunho daquele mundo perdido entre pedras, meio pagão e taumatúrgico, aquela miséria e aquela grandeza das gentes que conseguiam sobreviver contra as fatalidades a desafiar o destino.



A ideia do Dr. Ferro, o seu combate passou a ser construir uma biblioteca-museu Aquilino Ribeiro nas terras do Demo, em Moimenta da Beira.



O Salazar não gostou nada da ideia, a história meteu PIDE, homens de palha políticos da união nacional, dava um filme. Quem é que se interessa por estas coisas? Memória é coisa que dá demasiado trabalho, deixemos isso para o pessoal de Hollyood.


Só que agora nestas férias de verão, nestas viagens dei-me conta que o Aquilino é a imagem de marca para tudo o que é produtos da antiga beira-douro, vinhos, hotéis, artesanato, eu sei lá.



Agora põem a chipala do Aquilino em tudo o que é produtos regionais made in terras do Demo, a velha beira-douro dantes desconhecida e desprezada.



Abençoado Dr. Amadeu Baptista Ferro, meu amigo querido, herói da resistência à ditadura. Saravah!


Nesta história de Verão, de férias, ficam ainda muitas outras coisas para contar. Como diria o António Cartaxo, Portugal é uma história sem fim. O tempo vai correndo, não fujam, ele corre atrás de nós.


quinta-feira, 16 de julho de 2009

ROTAS DA SEDA?

Comecei a ouvir falar dos uigures há pouco tempo a propósito do encerramento de Guantanamo (sinistra palavra!) e do destino de não sei quantos desgraçados inocentes apanhados nas teias dos srs. Bush/Cheney.

Os chineses intrometeram-se na história da libertação de prisioneiros inocentes, e ameaçaram os países que tivessem a ousadia de acolher os prisioneiros uigures que, sem terem feito mal a ninguém, há vários anos estão à conta dos americanos guantanamarros.
É que esses muçulmanos são propriedade do Estado chinês, não têm outro sítio para onde possam ir, diz o comité central.

A China é um mosaico muito complicado, com pelo menos 56 grupos étnicos. Nesta diversidade toda, além dos tibetanos, os uigures são a principal espinha encravada na ideia de uma China imensa, poderosa e una. É que eles são muçulmanos, têm uma longa história e uma língua, uma cultura e uma identidade próprias. Não são chineses, não se sentem chineses, as suas raízes são turcas. Em 1933 proclamaram a independência da república do Turkestão Oriental, mas isso durou apenas 16 anos, em 1949 caíram sob a égide do Mao, que durante a revolução dita cultural fez os possíveis por lhes fazer a vida negra.

Os graves incidentes, com talvez centenas de mortos e muitos prisioneiros, que ocorreram recentemente, mostram que existe ali no Xinkiang uma situação muito complicada. Rebiya Kadeer, líder e porta-voz do povo uigure, exilada nos EUA desde 2005, acusa o governo chinês de ter cerca de 100.000 uigures na prisão por motivos políticos e religiosos e desafia a China, se quer ser um país respeitado, a respeitar os direitos de quem vive sob a sua autoridade.



Pois é, a eterna questão dos direitos individuais e da liberdade, como se sabe, os comunistas chineses detestam que se fale nessas coisas.

O Antigo Turkestão Oriental, actualmente província autónoma de Xinkiang, a maior do território chinês e cuja população é, em cerca de metade, constituída por uigures, foi um dos pontos de passagem mais importantes da rota da seda.

A rota da seda é uma velha história, terá começado por volta de 200 anos antes de Cristo, quando os chineses começaram a exportar a dita seda, através do Médio Oriente, para o Mediterrâneo e daí para a Europa via Itália. Quem deu cabo desta rota, que não era apenas de seda, foi o Vasco da Gama quando em 1498 chegou por mar à India.

Esse tráfego através de desertos, montanhas e vales era principalmente um veículo de encontro de civilizações e de culturas, que é sobretudo para isso que serve a nobre actividade do comércio. Comércio pacífico, entenda-se.

O que é que tem a ver a rota da seda com esta história do Xinkiang, da China dos Han e dos Uigures? Tem a ver com o futuro.

Tem a ver com o futuro, porque tem a ver com liberdade, tem a ver com as potências ditas emergente com a China à cabeça.

Na Europa, o reconhecimento dos direitos individuais, da liberdade e da democracia precederam e permitiram o desenvolvimento do capitalismo. Não era, não tem sido tudo perfeito, longe disso, os capitalistas tomaram o freio nos dentes, mas as liberdades políticas aí estão para se combater os desmandos dessa gente. Só não combate quem não quer.

Pelo contrário, na China, aparece o capitalismo, o enriquecimento, a sobre-exploração da força de trabalho, os trabalhadores sem direitos, com pseudo-sindicatos submetidos ao partido único. E as liberdades? Será a ordem dos factores arbitrária? Ou seja, primeiro o capitalismo e depois as liberdades políticas? Será isso possível?

Previsões, previsões, quem poderá fazê-las num caso destes? Sejamos modestos: parecem existir condições para um tremendo imbróglio político que a China e o seu regime terão que afrontar num futuro não muito longínquo, internamente por via de todas as tensões étnicas e sociais que se têm vindo a acumular e externamente por via principalmente das tensões que se vão acumulando nas fronteiras com os antigos parceiros da rota da seda, parceiros muçulmanos que tenderão a olhar cada vez mais para oriente.


Nesse olhar de confrontos, o Xinkiang e os uigures já estão na primeira linha.
Tem a ver com o futuro, sim. Há uma longa aprendizagem a fazer nestes territórios da antiga rota da seda, China, Irão, Israel, Líbano, Turquia e em muitos outros países do comércio global, que é a aprendizagem da liberdade.

Tem-se dito e tem-se invocado o falacioso pretexto de que o não respeito dos direitos individuais estimula o arranque e o crescimento económico, ou seja, em terra de pobres a liberdade seria um luxo desnecessário.

Ora, Amartya Sen dixit,as liberdades individuais são determinantes da iniciativa individual e das dinâmicas sociais, sem as quais não há desenvolvimento. Porque, o desenvolvimento é um compromisso baseado no compromisso da liberdade e só assim poderá ser, só assim, com estes compromissos com o outro, com os outros, se poderá acabar com todas as guerras e guantanamos onde se aprisionam gentes indefesas.


sábado, 4 de julho de 2009

LISBOA COSMOPOLITA?






O marialvismo da cultura política dominante de que se falava aqui há poucos dias, está plenamente comprovado se preciso fosse. Não é uma efabulação, ele existe, em todo o seu esplendor manifestou-se no debate parlamentar sobre o chamado estado da dita nação a que pertencemos.

Pobre estado, pobre nação! A sinalética de cariz pateticamente retrógrado e tipicamente marialva utilizada pelo sr. ministro teve consequências, ou não fosse preciso salvar o que resta de aparências. Caiu em desgraça perante os seus pares, isto apesar de se considerar apto para continuar no fauteil e de se apresentar como pessoa educada. Pessoa educada, claro, não será o marialvismo apanágio do verdadeiro ideal de um verdadeiro político?

Não há qualquer novidade em tudo isso, talvez alguma coisa a fazer, uma varredela radical, sabe-se lá, trazer mais gente nova, mais mulheres, talvez sejam diferentes. Mas, quando?

Para ajudar a aliviar o stress desta miséria quotidiana da política à portuguesa que temos que suportar, felizmente aparecem às vezes algumas boas notícias.

Não sei quem é o autor da ideia, não conheço os pormenores de bastidores. Mas o projecto do Centro Cultural África. Cont, acho que é assim que se chama, é uma ideia mais do que inteligente. Não gosto do nome, mas enfim não é grave. Mas gosto muito da ideia.

Haverá, em breve, esperemos, um lugar, um sítio na encosta frente ao lugar de todas as partidas, entre o Cais da Rocha-Conde de Óbidos e Alcântara, um lugar que será consagrado à arte africana, a África. Um lugar que receberá muita gente. Um lugar que será certamente de festa, de reconhecimento e de aproximação entre iguais.

Coincidência interessante e muito significativa: David Adjaye, arquitecto escolhido para inventar o nosso futuro centro cultural africano é um arquitecto british de top, mas africano de nascimento, nasceu na Tanzânia. Tem obras construídas nos EUA e na Europa, em particular em Londres.

Em entrevista ao Ípsilon do Público de 3 de Julho, refere-se ao trabalho que fez na antiga zona industrial de Londres, onde os artistas se “apropriaram” “dos resíduos da cidade industrial como sítio ideal para trabalhar, afastando-se dos palácios, procurando uma nova informalidade”.

Isto não vos diz nada, já visitaram a LX Factory no que resta da Alcântara industrial e operária? Pergunto: qual será o futuro deste espaço de liberdade e de criatividade urbanas?

Séculos de prepotência, de indiferença e de sobranceria em relação ao continente mártir de África serão reabilitados pelo futuro centro cultural africano? Vai levar muito tempo, a dívida é grande demais. Mas poderão começar a abrir-se caminhos, poderão ser construídos sítios de fraternidade e de reconhecimento do outro, dos africanos. Em Lisboa.


Reconhecimento do outro é isso que o David Adjaye invocou para explicar o seu conceito de cosmopolitismo, cito: “Tendemos a confundir modernidade cosmopolita com modernidade tecnológica, mas a modernidade cosmopolita é sobre o compromisso com o outro”.


Poderá Lisboa ser ainda um lugar de compromisso com o outro, uma cidade atrevidamente cosmopolita?

Lisboa tem muitos compromissos para saldar.

Lisboa é a única capital europeia cujo capital principal são os vestígios, os rastos, as cicatrizes, as pedras, o ar respirado por quem levou avante uma epopeia de aproximação e de descoberta do outro.

O que é que temos feito desse capital nesta capital que vejo amorfa, vítima das manigâncias de alguns candidatos a Madoffs, engarrafada por contentores e por comboios e camiões que não nos deixam aproximar do nosso Tejo que imaginamos deslumbrante, mas que não podemos ver, o que é que vamos fazer?

Cais de Alcântara, Cais da Rocha, quantas memórias de partidas e de chegadas!

O navio chamava-se Quanza, era velho, tinha sido construído na Alemanha em 1927, estava escrito na placa. Era um barco misto, de carga e passageiros e eu lá embarquei no cais de Alcântara, miúdo, já lá vão uns anos. Como é que poderia esquecer uma tal viagem a brincar no convés, a olhar os peixes voadores e os golfinhos, quando cheguei a África, estava em Pointe Noire na antiga África Equatorial Francesa, hoje Congo-Brazzaville.

Quando olhei pela vigia, só havia negros, eram os outros? Em Angola, descobri depois que não eram os outros, dito de outra maneira, descobri que odiava o racismo, sem saber muito bem o que isso era. Provavelmente ninguém sabia, toda a gente andava muito contente. Mas o Luandino Vieira sabia muito bem o que era isso do racismo. Foi parar ao Tarrafal, embarcado no tal Quanza da minha precoce viagem.

Com o centro africano na encosta da Cruz Vermelha e do Museu de Arte Antiga vislumbrando o Tejo, Lisboa poderá ficar mais perto das suas origens. Mas ficará, por isso, mais cosmopolita?


Mais cosmopolita, com os contentores a taparem a vista do rio e com os comboios a impedirem a passagem para o lado de lá?


Mais cosmopolita, com todas as construções que têm vindo a ser feitas quase com os pés dentro de água, construções de espaços reservados para pequenas elites de burocratas ou de gente de dinheiro que se acolhe em hotéis de luxo?


O que é que resta das margens do rio que é suposto pertencer à gloriosa cidade de Lisboa, capital de todas as viagens, nessa suposta Frente Tejo, construída entre fronteiras que o cidadão comum não pode atravessar, uma espécie de muro de Berlim, de muro da vergonha?

Nós os que queremos derrubar esse muro somos os outros com quem os donos dos contentores e do combóio não querem qualquer compromisso. Que não nos deixam passear livremente na margem do rio, que nos querem impedir de admirar os belos navios que demandam Lisboa, de ver os passageiros embarcar para longe e desembarcar à nossa beira, procurando vestígios, sinais da cidade de mil histórias de descobertas, de riquezas delapidadas e de desmandos sem fim. Lisboa de todos os continentes, Lisboa cidade mais exótica de África.

Cosmopolitismo, compromisso com o outro, lembra-te Lisboa, diz a esses senhores que nos governam que se lembrem.

Rei Gugunhana, lembram-se? Morreu exilado nos Açores. Algum rasto dele na cidade de onde foram dadas as ordens, de onde partiram os navios e os soldados que o aprisionaram? Onde está a rua Rei Gugunhana?

Onde estão os sinais da cultura, da história dos índios subjugados pelos portugueses no Brasil, dos escravos que vendemos para muitos sítios? Temos vergonha desses comércios, ou estamos simplesmente distraídos?

Onde estão os compromissos com o outro na nossa memória e no nosso futuro?



terça-feira, 30 de junho de 2009

BEM-AVENTURADOS



Portugal é um país pacífico, parece. Tem uma longa tradição de aguenta aí. Aguenta até quando?

Segundo um estudo feito pelo Centro de Estudos Territoriais (CET), associado ao ISCTE -Instituto Universitário de Lisboa, os portugueses estão cada vez mais pobres e, como se isso não bastasse, estão também mais desmobilizados e desinteressados da política. Não se queixam. Em conclusão, segundo o estudo, estão mais felizes. Voltámos aos tempos do Dr. Salazar?

Os portugueses estão mais pobres porque afinal já não são apenas 18%, nem 20%, upa, upa! 33% da população, portanto um terço de portugueses juntamente com os imigrantes, vive num “contexto de precariedade” e luta pela “sua sobrevivência”, estou a citar uma das coordenadoras do estudo e mais de metade (57%) tem um orçamento familiar abaixo dos 900 euros.

Mas tudo isto não assusta os portugueses, porque pelos vistos vivem felizes.

No tempo do Dr. Salazar também era assim, a pobreza era uma virtude. Pobres mas honrados, pobres e conformados sem ambições, contentavam-se com pouco, eram felizes. Era assim, parece que era assim. Tinham umas hortas, auto-cultivo e assim contrariavam a fome. Parece que é isso que também está a dar agora nalgumas zonas mais pobres do interior. E provavelmente também nas chamadas hortas urbanas…

No dia desta notícia, duas outras que têm a ver com dinheiro e com honradez, fazem um contraponto interessante.

O sr. Madoff, ex-presidente do Nasdaq de New York e grande financeiro que se superou a si próprio nesses domínios ao conseguir a proeza de realizar a maior falcatrua, vigarice e ladroagem da história, apanhou 150 anos de prisão. Pena simbólica, está-se mesmo a ver, vai viver aconchegado num sítio qualquer e depois deixa-se de falar do assunto, nestas coisas a solidariedade entre ricos e poderosos fala sempre mais alto.

Será que os nossos senhores banqueiros que também se têm ilustrado na arte de bem enganar muita gente e encher os bolsos seguirão o destino do sr. Madoff? À escala portuguesa, não se comparam com Wall Street, são apenas mais uns banqueiros, mas, mesmo assim, citando o Vital Moreira, ilustre cabeça de lista do PS, que grande ladroagem!

Haverá alguém que acredite que estes ilustres homens de finanças da nossa praça receberão nem que seja uma pequena advertência simbólica?

Por enquanto, as perspectivas de que isso venha a acontecer são muito ténues e longínquas. Só um é que está por detrás das grades. Os outros continuam a divertir-se à grande, alguns com reformas de milhões, aviões particulares e exércitos de seguranças. Serão felizes?

O exemplo português trazido pelo estudo do CET confirma que não. Porque o velho ditado continua a ter razão: riqueza não dá felicidade, pobreza sim.


Pobres mas felizes, será o nosso país um sítio de pessoas maioritariamente bem-aventuradas?

Se assim fosse, isso seria um mal menor, porque bem vistas as coisas, bem-aventurados são os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus!

Porque, além de estar na Bíblia e de ser uma frase atribuída a Jesus Cristo, essa bem-aventurança justifica as famosas leis do mercado e em particular a liberdade que têm os mais fortes e aguerridos em explorarem em seu proveito os mais pacíficos e desmobilizados.

Desmobilizados têm estado, desmobilizados continuarão. Até quando?

terça-feira, 23 de junho de 2009

HUMILDADES


Em alguns países europeus, o debate político tem vindo a incidir cada vez mais sobre as lições que é preciso tirar da crise, com vista a melhorar as sociedades do futuro. O facto de o pós-crise estar na ordem do dia nesses países significa que existe uma enorme pressão social que obriga os governos, na sua maioria de direita, a terem que equacionar planos e orientações que teoricamente poderiam e deveriam ser protagonizados por governos de esquerda. Grande novidade, portanto.

Em Portugal pouco se fala do pós-crise. Aqui, a agenda política continua a ser pontuada pelas mesmas velhas questões de há vários anos, tgv, aeroporto, auto-estradas, avaliação dos professores, educação, segurança, justiça. Velhas questões que muito provavelmente continuarão a ser discutidas durante a próxima década.

As únicas mudanças no nosso debate político, se a isso se pode chamar debate, poderão, como de costume, vir a ser novas tricas e comérages politiqueiras à volta de novos personagens que continuamente vão emergindo na cena pública até ao seu rápido esquecimento.

A última comérage política, que durante uma semana fez salivar a gente do milieu, comentadores, repórteres, políticos, foi o coelho de nome humildade, tirado da cartola pelo ainda primeiro-ministro Sócrates.

Infelizmente, a humildade inerente à dúvida do Sócrates ateniense não tem a ver com esse passe de mágica, porque se assim fosse, poderia ainda haver algumas razões de esperança na política.

Em tempos, o primeiro-ministro Cavaco Silva foi exemplo assumido de denegação da dúvida ateniense e por vias do facto um bom exemplo da falta de humildade dos políticos à portuguesa: “raramente tenho dúvidas e nunca me engano”, creio que foram estas as suas palavras no auge do seu poder. Apesar de esmagador, tal pensamento não ultrapassa, no entanto, o alcance do “sou um animal feroz” do ainda primeiro-ministro Sócrates. Mas ambos estão em perfeita sintonia.

A verdade nua e crua é que o combate político em Portugal, que me lembre, não tem tido por costume ser principalmente um combate em nome de ideias. Porque somos um país marialva, quem gritar mais alto, quem parecer mais machão, normalmente deve ganhar. É um princípio que inspira muita gente que tem poder. Não vou dar exemplos, teria que ser uma lista muito longa, de facto o Sócrates de S. Bento não está sozinho.

Mas interessa reflectir sobre as consequências da falta de humildade dos políticos à portuguesa.

Ser humilde em política significaria em primeiro lugar saber ouvir, em vez de se assobiar para o lado sempre que se colocam problemas. Exemplo óbvio: soube a Ministra da Educação ouvir os professores que manifestaram na avenida da Liberdade?

Pergunta óbvia: como é que a socióloga Maria de Lourdes Rodrigues que, enquanto Ministra da Educação, aprovou nos primeiros tempos do seu mandato algumas medidas corajosas e inteligentes, se lançou depois numa guerra de trincheiras contra os professores, invocando nessa guerra argumentos puramente administrativos e burocráticos, os quais, não sendo nem políticos nem sociológicos, lhe deveriam ser estranhos?

Nova pergunta óbvia: será que a política e o poder corrompem, transtornam o espírito de quem os exerce?

Ou será que o simples exercício da política não transtorna apenas quem está no poder?

Infelizmente, existem poucos políticos verdadeiramente livres, penso que a maioria dos nossos políticos limitam-se a obedecer à lógica e às ordens dos seus partidos, o interesse público é apenas um detalhe no meio das suas divagações de circunstância. São políticos assalariados e, por isso, para merecerem o emprego, têm que defender acima de tudo a linha e os interesses do partido. Alguma vez viram um político de esquerda concordar em público com ideias ou propostas de um político de direita ou vice-versa?

Ser humilde em política deveria, pois, também significar que os políticos se ouvem atentamente e com respeito uns aos outros. Por que razão não conseguem os que estão no poder e os que estão na oposição debater entre si de maneira frontal, inteligente e civilizada acerca das melhores soluções para sair da actual crise e preservar um futuro melhor? Será que isso iria prejudicar o país?




Humildade significaria também que os políticos sabem respeitar os cidadãos que os elegeram e que, sendo o seu poder transitório, um poder delegado pelo povo, não se podem arrogar em detentores únicos desse poder.

Na realidade, é o marialvismo da cultura política dominante que explica o corte absoluto que separa os políticos dos cidadãos e os cidadãos da política. Temos, assim, uma sociedade amorfa, uma sociedade em vias de asfixia, onde, por exemplo, os jovens têm cada vez menos oportunidades de libertar a sua criatividade em projectos de futuro. E assim, vamos perdendo a nossa identidade e vão aumentando as incertezas e os perigos.


O actual contexto de crise deveria estimular a procura de novas soluções, soluções mesmo novas, deveria promover a iniciativa e a criatividade dos cidadãos. Infelizmente, entre nós a política tem servido principalmente para fazer favores aos poderosos e aos grandes grupos económicos e financeiros.

Em defesa do interesse público, mandaria a humildade política, que, em vez de se distribuírem milhares de milhões por esses grupos, se utilizassem os dinheiros e a capacidade do Estado para promover a actividade de grupos de cidadãos trabalhadores que apresentem projectos viáveis e socialmente úteis de empresas ou de cooperativas. Projectos que, por exemplo, se substituíssem a empresas falidas ou deslocalizadas.

Mandaria a humildade que os políticos soubessem partilhar os seus poderes, abrindo espaço à intervenção da sociedade na gestão do interesse público e promovendo e defendendo os direitos, a autonomia e a iniciativa individuais.
Mandaria a humildade que os governos, os legisladores, os juízes e as polícias fossem capazes e estivessem interessados em defender os mais vulneráveis contra as violências, contra a sobrexploração, contra as injustiças.
Mandaria a humildade política que os políticos de hoje estivessem honestamente interessados em contribuir para que se construa uma verdadeira democracia e uma sociedade justa e sem descriminações.
O problema, a dificuldade de tudo isto é que essa coisa da humildade política é apenas uma fantasia de verão, quando acabarem as eleições não se fala mais nisso.